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Atualizado em 23 DE abril DE 2016 ás 21:10

Retrocessos marcam a legislação indigena no Brasil

Palestrantes trazem o panorama dos direitos do índio no Brasil e alertam para a falta de respeito na realização de procedimentos e na aplicabilidade das leis

LUCAS GAMA*
lucasgama@gmail.com

Como em um ritual, caminhando, cantando e dançando, do corredor para a sala, os organizadores, alunos indígenas que fazem parte do Programa de Educação Tutorial (PET Comunidades Indígenas UFBA), iniciaram mais uma atividade do Abril Indígena UFBA 2016, chamando a atenção da faculdade e arrastando os estudantes para dentro da sala 105. Assim iniciou a mesa de debate Direitos indígenas: avanços e desafios atuais.

A aluna formada em direito, na UFBA, e uma das organizadoras, Juliana Santos, foi a mediadora e fez a fala de abertura, pontuando a importância do evento acontecer alí, na Faculdade de Direito. Era a primeira vez que a programação do evento acontecia lá. Fato importante, pois, de acordo com a professora e tutora do PET Conexões Comunidades Indígenas, Clélia Neri Cortes, direito é o curso que têm o maior número de alunos indígenas, na UFBA. Para Juliana, o evento vem como uma necessidade de desmistificar o índio e por isso também acontece na Faculdade de Direito, com a intenção de mostrar, que lá também tem Índio, índio aluno e advogado. A mesa foi composta por três advogados, que atuam em diferentes áreas (instituições): o representante da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais (AATR), Carlos Eduardo Chaves, o advogado indígena, Eurico Lourenço “Baniwa”e o professor da Faculdade de Direito da UFBA, Julio Rocha.

Da esquerda pra direita: Juliana Santos (mediadora), Carlos Eduardo Chaves, Eurico Lourenço "Baniwa" e Júlio Rocha / Imagem: PET Comunidades Indígenas UFBA

Carlos Eduardo Chaves, da AATR, iniciou o debate, fazendo um panorama das leis e dos direitos indígenas. Ele explicou, por exemplo, que os índios têm direitos originários, que parte da compreensão legal de que os povos indígenas ocupavam o Brasil antes dos colonizadores e, portanto, tem direito às terras que condiziam a cada tribo. “São os direitos originários que antecedem o estado brasileiro”, pontua Carlos. De certa maneira, os direitos originários podem ser compreendidos como uma forma de respeito e compreensão à cultura e aos direitos do índio, que, na teoria, permite a possibilidade para que os povos possam reassumir terras originalmente suas.

Contudo, Carlos argumentou que há muita contradição e retrocesso em relação aos direitos indígenas, no Brasil. Como exemplo desse antagonismo, o advogado citou o Marco Temporal, que se refere a uma lei promulgada na constituição de 1988, decretando que os índios só poderiam exigir os seus direitos originários sobre a terra que ocupavam naquele momento, quando se passava a lei, em 05 de outubro de 1988. “A constituição de 88 é o Marco Temporal do reconhecimento desses direitos [originários], quando todas as constituições anteriores já reconhecem esses direitos originários”, interpreta o advogado. É como se a lei só passasse a valer a partir daquele momento, invalidando o esforço anterior. “Trata-se de toda a estratégia de retirar do índio a sua principal arma que tem sido os direitos originários”, completa Carlos.

Vale dizer que os princípios dos direitos originários dos povos indígenas foram formulados desde o início da colonização portuguesa, aparecendo em escrituras oficiais da colônia portuguesa em 1680, no Alvará Régio (de acordo com  a Fundação Nacional do Índio - FUNAI), até ser incluso na constituição brasileira de 1934.

Carlos explica que, “na medida em que você reconhece esse marco temporal, quem não estivesse alí, em cima da terra, mesmo que essa terra tenha sido tomada violentamente, não teria o direito de retomar essas terras”. Essa “castração” dos direitos se estende para além dos povos que “perderam” seus territórios ao longo da história. Contempla também os que têm terras demarcadas, mas que precisam caçar e pescar em uma área que não está englobada na demarcação do seu espaço. “Dentro dessa interpretação do Supremo Tribunal Federal (STF), esse direito só existiria se fosse provado um esbulho remitente sobre essas terras”, continua Carlos, pontuando que, a partir do Marco Temporal, para acionar os direitos originários, os povos teriam que provar um insistente impedimento de quem estava usando as terras historicamente indígenas. Essas provas “poderiam ser por um conflito, legitimando a violência, ou se os povos indígenas estivessem demandando judicialmente essa terra, ao tempo da Constituição de 1988”, explicou.

Para o advogado da AATR, aí surge mais uma grande contradição: “até a promulgação da constituição de 88, esses povos indígenas eram tutelados pela FUNAI e sequer tinham autonomia para entrar com ações judiciais”. Somente a partir da Constituição de 1988, foi que os índios deixaram de estar sob  regime tutelar e poderiam, por exemplo, responder ou abrir processos judiciais, individualmente ou como comunidade.

Carlos apontou que hoje usa-se a retórica do Marco Temporal para embasar decisões jurídicas. “Essas interpretações já estão sendo usadas por juristas federais, de primeira instância, decidindo até contra comunidades quilombolas, dentro dessa mesma teoria do marco temporal”. Um exemplo desse cenário foi a anulação dos pedidos de demarcações de três de Terras Indígenas, no ano passado, pela segunda turma do Supremo Tribunal Federal (STF)  (leia aqui sobre essa anulação)

Legislação no Brasil - Outro ponto debatido foi a relação dos índios com o funcionamento das leis brasileiras, abordado pelo palestrante Eurico Lourenço “Baniwa”, advogado indígena de etnia Baniwa. Ele expôs que os povos indígenas ainda estão aprendendo a lidar com o mundo das leis: ”Isso tudo é muito novo. É como se estivéssemos saindo da adolescência para a fase adulta”. Para ele, há um hiato cultural e uma certa contradição em relação à forma como se dá os direitos brasileiros. “Uma tarde o índio vai estar lá na rede dele, balançando e a uma da manhã ele vai estar no presídio. Por mais clareza que ele tenha, ele sabe o que está acontecendo nesse movimento? As vezes não tem ninguém para conversar com ele, para explicar o que está acontecendo. É você que tem que saber o que é audiência de custódia. O que posso fazer e o que eu não posso fazer na audiência. Porque o parente não vai ter ideia da constituição, na cabeça”, argumentou o advogado.

Passeando pela sala cheia, Eurico "Baniwa" conta suas experiências como advogado indígena / Imagem: PET Comunidades Indígenas UFBA

Eurico Baniwa também chamou a atenção para os desafios enfrentados pelos advogados indígenas em relação aos direitos brasileiros.Como índio e advogado, Baniwa falou sobre a importância em compreender como funciona o jogo político do Direito e em ter jogo de cintura. “Uma noite você está dormindo e receba uma ligação de que um índio foi preso. Você vai à delegacia e lá o delegado não lhe deixa entrar. Diz que a delegacia está cheia. Aí você fica do lado de fora, esperando, por uma, duas horas, até que ele lhe deixa entrar e você acompanha o índio. No dia da audiência, você tem que ser esperto e saber que o delegado vai estar lá. Aí, na hora que o juiz perguntar sobre o processo, você fala: ‘é seu Juiz, o parente foi preso. Eu até fui lá, ajudar a soltar ele, mas não pude entrar. O delegado não deixou..’. No outro dia, o delegado vai lhe chamar na delegacia. Ele mesmo vai lhe atender, vai lhe tratar bem, vai até mostrar a sala dele ‘Olha Eurico o que eu coloquei na minha parede”, aí mostra algum símbolo indígena que ele pregou na parede”.

Pela fala de Baniwa, percebe-se que esse desafio compreende um tensionamento cultural, um embate entre dois mundos e culturas distintas. “Quando a gente conseguiu fazer a liberação, quando conseguimos fazer a audiência de custódia, o parente saiu na frente do fórum, festejou, me abraçou emocionado e falou assim ó: ‘Muito obrigado, viu parente?’, com a orelha caída, soluçando. Aí falou assim: ‘Na próxima semana eu vou trazer um tatu pra você”, concluiu o advogado, mostrando a dualidade e a sobreposição dessas duas realidades.

O professor Julio Rocha, da Faculdade de Direito da UFBA, último a falar, fez um recorte a partir dos desafios e mudanças que a sociedade brasileira deve enfrentar, enfatizando a necessidade de ações para sensibilizar quem trabalha com a lei. Ele defendeu, por exemplo, que precisamos discutir a criação de juris mais representativos, para permitir maior identificação com as questões em pauta. “Nos Estados Unidos existe uma corrente muito forte de direitos étnicos nos juris. Você vai para certos locais em que se tenha afro-americans ou latinos. É uma estratégia de defesa. Não se faz um juri sem que parte dele tenha sensibilidade e relação com a dimensão étnica”, explicou Júlio. E problematiza, “ Como é que você vai trabalhar numa realidade indígena, com não-indígenas? Tratamos o outro como cidadão universal, mas não particularizamos ou fazemos um recorte identitário”.

Rocha também tratou das ideias de “plurietnicidade” e “multiculturalidade”, sinalizando a importância de que seja representada essa pluralidade, citando a Colômbia como exemplo. “A Colômbia conseguiu ter jurisdisção indígena sobre conflitos indígenas. Isso é reconhecer os costumes e formas de regular os conflitos”. Para o professor, essa representatividade precisa ser posta em prática na nossa política: “[os colombianos] criaram cotas para parlamentares, no congresso nacional, para parlamentares indígenas. Ou a gente faz isso ou a gente nunca vai garantir a plurietnicidade desse país”.

O advogado Carlos Eduardo Chaves complementou essa ideia, falando que, para além de pluriétnico, o Brasil também pode ser visto como plurinacional. “Se você tem um estado plurinacional, você reconhece que são nações – embora dentro de um território que foi conquistado. A partir do momento em que você reconhece isso, você tem que tratar uma prisão política, como a do cacique Babau, como uma prisão de um chefe de Estado. Você está declarando guerra a uma nação”, argumentou, se referindo à prisão do dia 07 de Abril, de Rosivaldo Ferreira da Silva, o Cacique Babau, chefe da tribo Tupinambá  Olivença, que fica no sul da Bahia.

Abril Indigena UFBA 2016 – Após o debate, em que a sala iniciou e terminou cheia de gente, houve roda de perguntas com muita participação. A sensação é que quem estava presente, estava alí por inteiro, prestando muita atenção e participando do início ao fim. Para se ter ideia, a roda de perguntas durou mais de uma hora e meia, totalizando quase três horas de discussão. Um dos alunos da Faculdade de Direito pediu fala, frisando a importância do evento, principalmente pelos desafios de ser aluno negro naquele espaço e disse “eles [os outros alunos] vão ter que se acostumar com isso [com debates como esse]. Precisam respeitar a nossa presença”.

Dançando e cantando, os organizadores deram início ao evento / Imagem: PET Comunidades Indígenas UFBA

De acordo com a professora e tutora do PET, Clélia Neri Cortes, o evento surgiu um ano após a criação da instância, a partir de uma demanda dos alunos e bolsistas do grupo, que buscavam dar mais visibilidade para as causas indígenas, para o debate e pelo fato de que a faculdade também é formada índios.

Segundo Clélia, na UFBA, totalizam-se 52 alunos indígenas, declarados na Pró-Reitoria de Assistência Estudantil (PROAE). “É importante que eventos como esses ocupem as universidades, para se conhecer outras pautas e conhecer o outro”, afirmou a bolsista e organizadora do evento Amanda Caroline, bolsista do PET Conexões Comunidades Indígenas e uma das organizadoras do evento. Como Juliana falou na abertura, é importante questionar estas demandas em outros espaços – para alunos não indígenas acessarem essa informação, se questionarem e saírem das suas linhas de conforto.

Pode se afirmar que o Abril Indígena tem feito esse papel, pela intenção lançar a pauta indígena, de dialogar com a comunidade acadêmica e também pelo caráter itinerante, ocupando diferentes espaços dentro da faculdade (como o Pavilhão de Aulas da Federação (PAF) e a Faculdade de Direito) e fora (como o Museu de Arqueologia e Etnografia, no Pelourinho e a Casa da Música, em Itapõa).Confira a programação completa.

*Graduando em Jornalismo na Faculdade de Comunicação da UFBA e estagiário da Agência de Notícias em CT&I – Ciência e Cultura UFBA

Um comentário a Retrocessos marcam a legislação indigena no Brasil

  1. Amilton André Gomes disse:

    Achei oportuno sempre retomar essas questões

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