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Atualizado em 7 DE novembro DE 2018 ás 20:24

Recontando a história dos donos da terra

Deslocando a análise da formação de saberes para seus efeitos na sociedade, o evento “Da aldeia para a universidade”, debate o caráter dúbio da relação do conhecimento formal com os povos indígenas, muitas vezes usada para legitimar o genocídio desses povos, que agora ocupam espaços de produção do conhecimento, como a universidade, como uma forma de resistência

POR L. COSTA*
costa.larissa164@gmail.com

Imagem: Giovanna Hemerly

A construção do saber sobre povos historicamente marginalizados tem, ela mesma, suas problemáticas. Inicialmente o conhecimento formal foi utilizado para produzir falsas narrativas de grupos como indígenas e afrodescendentes, que legitimaram genocídios e séculos de exploração. Por isso, o I encontro organizado pelo Coletivo Afroindigenessência, “Da Aldeia para a Universidade”, trouxe a mesa “Novas histórias indígenas no Brasil”, para resgatar as narrativas não contadas e repensar as antigas histórias. O evento, iniciou na tarde de ontem, 6,  no auditório do PAF III, no campus de Ondina, UFBA e encerra nesta quarta-feira, 7.

Composta por professores pesquisadores da história e das sociedades indígenas, a mesa debateu os efeitos dos conhecimentos produzidos sobre e nos povos indígenas. Como ressalta a doutora em História Social e professora da UFBA Maria Hilda Baqueiro, as narrativas contadas nos livros didáticos fazem parte de uma estratégia de apagamento desses povos, através da construção de mitos como o do selvagem canibal e do indígena indolente e preguiçoso.

A professora Maria Hilda Baqueiro afirma que a construção de mitos sobre os indígenas faz parte de uma estratégia de segregação/ Imagem: Giovanna Hemerly

Dividir para conquistar - A estratégia de apagamento remonta à própria formação do Brasil, quando em seu período colonial era composto por portugueses, indígenas e africanos. Segundo a professora, as tensões entre esses dois últimos, causadas por suas diferenças, cedeu lugar a um sentimento comum, motivado por compartilharem a mesma condição subalterna. Temendo revoltas, os colonos fabricaram as mesmas histórias que ainda hoje se leem em livros escolares.

Capa da revista Veja, de 1992, sobre o caso do cacique Paulinho Paiakã, acusado de estuprar uma jovem branca, utiliza estereótipo do indígena selvagem/ Fonte: Reprodução

Capa da revista Veja, de 1992, sobre o caso do cacique Paulinho Paiakã, acusado de estuprar uma jovem branca, utiliza estereótipo do indígena selvagem/ Fonte: Reprodução

O plano de separação levou ao isolamento dos indígenas das cidades, retirando o acesso dos povos a mecanismos políticos para pleitear melhores condições de vida. No fim, o indígena é invisibilizado e estigmatizado como o ser primitivo da mata, sendo-lhe inclusive negado o direito de suas comunidades se transformarem e acessarem dispositivos como celulares e computadores.

Para mudar essa situação, a professora Maria Baqueiro afirma que grupos oprimidos, como os afrodescendentes e os indígenas, devem se unir em luta para terem acesso a direitos básicos e a sua dignidade. “Cada vez mais vocês serão levados a se dividirem, porque isso é o que interessa no processo de conquista e dominação. Temos que aprender a lutar juntos. A luta é a mesma, pelo direito de viver com dignidade, seja você negro, seja você índio”, declara.

Visão limiar - À perspectiva da história indígena centrada na exploração desses povos pelos colonizadores, que os descrevem como subjugados, o que o doutor em História Social e professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), André Rego, chama de visão limiar. Como ele ressalta, a história indígena é marcada pela violência do genocídio e da exploração. Isto ocorre porque costuma se levar em conta a história desses povos apenas a partir da colonização, desconsiderando as trajetórias anteriores. O termo índio, por exemplo, é uma forma de apagar a pluralidade de povos existentes antes da colonização.

O professor André Rego criticou a narrativa histórica dos indígenas que os considera somente a partir da colonização/ Imagem: Giovanna Hemerly

O apagamento levou a instabilidade da situação dos indígenas no Brasil. Segundo o professor, não havia espaço para os nativos no país. “O índio não tinha lugar no seio do povo brasileiro. Ele seria assimilado com o tempo”. As histórias dos indígenas se perderam também posteriormente, quando se desconsidera seu papel na formação do Brasil Colonial.

Como forma de resistência, os povos passaram a integrar associações de defesa dos direitos indígenas. O professor cita como determinante a ocupação de espaços de poder político, tendo como marco a atuação de lideranças indígenas no texto da Constituição de 1988. O movimento político de reconhecimento da diversidade culminaria em mudanças institucionais, como a abertura das universidades a novos públicos.

A visão dos pesquisadores - Se conhecimento formal, como o produzido na universidade, já desempenhou um papel na subjugação de povos nativos, hoje volta-se à inclusão desses povos e ao resgate de sua memória e cultura. O doutor em Estudos Étnicos e Africanos pelo Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos da UFBA (Pós Afro – UFBA) e professor da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Francisco Guimarães, conhecido como Chico Índio, lembrou seu período de atuação na Fundação Nacional do Índio (FUNAI), onde pôde entrar em contato com as culturas indígenas, ausentes nas universidades.

De acordo com o professor Guimarães, a junção com a Associação Nacional de Ação Indigenista (ANAÍ) possibilitou desenvolver projetos voltados tanto para o ensino de história indígena na universidade quanto para a formação dos índios no magistério. Ele afirma também que atualmente já existe uma visibilidade maior para esses povos dentro das universidades tente relevante atuação como pesquisadores. Contudo, mesmo ressaltando a participação dos indígenas no campo da pesquisas nos centros de produção do conhecimento, a mesa era composta somente por não-índios, apesar da programação do evento para o mesmo dia ter contado com a presença de indígenas como debatedores.

O doutor em Antropologia Social, diretor do Museu de Arqueologia e Etnologia da UFBA e professor da UFBA Marco Tromboni concorda com a fala de Guimarães e frisa que o papel da universidade enquanto formadora de conhecimento deve ser crítica. A relação entre a instituição e as aldeias pode ser negativa se os pesquisadores tomarem estas como mero objeto de pesquisa. Antes, cabe ao saber formal reconhecer a voz própria dos indígenas, não substituí-la por outra. “[Existe] Uma tentativa de produzir um conhecimento que na verdade está referenciado a paradigmas e teóricos que não necessariamente tem a ver com o universo de sentido daquelas populações. É uma produção que se torna bastante hermética, inacessível para aquelas populações”, afirma Tromboni, e reforça que o conhecimento da universidade deve ser útil e possui benefícios a oferecer a qualquer povo marginalizado.

Marco Tromboni afirma que o conhecimento construído na universidade deve ser livre/ Imagem: Giovanna Hemerly

*Estudante do curso de jornalismo da Faculdade de Comunicação e repórter na Agência de Notícias em CT&I – Ciência e Cultura UFBA

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