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Atualizado em 5 DE abril DE 2019 ás 01:07

Pela vida de quem?

Parte da programação do Março Lilás, o evento UFBA Pela Vida das Mulheres contou com a exposição de dados que evidenciam como a proibição do aborto afeta principalmente mulheres negras e pobres. Do outro lado, o evento UFBA Pela Vida trouxe debate contra a descriminalização do aborto, com direito a oração e exibição de documentários

POR L.COSTA* ; THAINARA OLIVEIRA* e JEFFERSON HORA*
costa.larissa164@gmail.com / thzinara@gmail.com / jeffersonbmhora@gmail.com

Imagem: Giovanna Hemerly

Pela Vida das Mulheres foi um grito de alerta demarcado pelo ato político UFBA Pela Vida das Mulheres, realizado como parte da programação do Março Lilás, dedicado ao debate sobre o câncer do colo de útero na universidade. O evento teve como cenário as paredes da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que recebeu cartazes com palavras de ordem pelos direitos reprodutivos das mulheres. O ato também se concentrou na apresentação de relatos de casos de mulheres mortas, que sofreram complicações após abortarem, seja pela ingestão do medicamento Citotec, seja com o uso de agulhas e até com talos de mamona. Entres essas histórias de luto, a de Ingrianne Batista, uma mulher negra, de apenas 30 anos, que realizou um aborto com métodos caseiros e morreu por infecção generalizada. Ingrianne não precisava morrer, precisava ter sua vontade respeitada.

Mais do que um problema de saúde pública, o aborto é um exercício de autonomia. É o que defende a doutora em Saúde Coletiva do Programa Integrado em Gênero e Saúde (MUSA) do Instituto de Saúde Coletiva (ISC / UFBA), Greice Maria de Souza Menezes. A pesquisadora trouxe dados e traçou um panorama que prova: as mulheres que abortam são de vários credos, classes e têm diversas cores, mas as vítimas são, em sua maioria, negras e pobres. “O exercício da autonomia não é matizado apenas pelo gênero. A posição tanto de raça quanto de classe produz tanto alternativas desiguais para as mulheres em relação a própria gravidez, a própria escolha de engravidar e do exercício da sexualidade, quanto também o acesso a seus corpos”, afirma.

“A ilegalidade do aborto obriga as mulheres a realizá-lo clandestinamente de forma insegura”, declara a doutora em Saúde Pública pelo ISC, integrante do MUSA e fundadora do Odara – Instituto da Mulher Negra, Emanuelle Góes. Sua tese Racismo, aborto e atenção à saúde: uma perspectiva interseccional, defendida em 2018, investiga “o efeito do racismo na produção de condições mais desfavoráveis para as mulheres negras, quanto ao contexto da gravidez à busca por cuidados e ao acesso aos serviços de saúde no momento do abortamento”.

Segundo Góes, as reivindicações de legalização do aborto devem partir dos princípios de enfrentamento ao racismo perpetuado na sociedade. Como aponta a Pesquisa Nacional do Aborto (PNA, 2016), a incidência do aborto é maior entre mulheres de menor escolaridade, pardas, pretas e indígenas. A tese traz outras informações ainda: “mulheres pretas e pardas chegam em condições piores de saúde nas clínicas e hospitais; chegam em estado de gravidez mais avançado; alegam demorar para procurar atendimento por medo de serem maltratadas”.

Como sustenta Greice Menezes, a criminalização do aborto causa custos desnecessários ao Sistema Único de Saúde (SUS), ao ser necessário oferecer tratamentos e atendimentos relativos às complicações, que possam vir de procedimentos mal executados, e também influi negativamente no atendimento dado às mulheres que realizaram o aborto. Com medo de denúncias, as mulheres demoram a procurar atendimento em caso de complicações.

De acordo com a PNA, uma em cada cinco mulheres aos 40 anos de idade já realizou um aborto. Mas o código penal brasileiro restringe a legalidade apenas aos casos de estupro, anencefalia e quando há risco à saúde da mãe. O que não impede de utilizar o método. “Essa fusão entre o feminino e o maternal tem sido um dispositivo de controle sob as mulheres. Para nós, o controle da nossa capacidade reprodutiva é algo central na nossa autonomia. Sem esse direito, dificilmente as mulheres poderiam escolher trajetórias alternativas de vida de escolher se quer ter filhos, quantos e quando”, complementa Menezes.

Evento UFBA Pela Vida das Mulheres / Foto: L Costa

UFBA pela vida – Apesar do movimento feminista ser favorável à legalização do aborto por considerarem que se trata de um problema de saúde pública, por evitar a chance de morte entre as mulheres e lhes garantir o direito de decidirem o que é melhor ou não para suas vidas, há alguns grupos que defendem uma perspectiva oposta. Porém, pelo que apresentam, possuem um objetivo convergente: a defesa da vida. Foi o exposto no evento UFBA pela vida, organizado pelo grupo de estudos Virtute Spiritus e pelo Instituto Santa Hildegarda.

Realizado na última semana, o evento foi iniciado com oração e montaram um stand com camisas, livros e acessórios customizados com frases contra o aborto e imagens cristãs. Na oportunidade, foi exibido o documentário Blood Money, abordando a indústria do aborto com depoimentos de médicos, mulheres, responsáveis por clínicas, pastores e ativistas.

Segundo o documentário, mulheres são induzidas a recorrer ao aborto como única solução e se arrependem depois, mostrando o panorama de clínicas nos Estados Unidos que chegam até a falsificar resultados e o mercado farmacêutico que produz remédios contraceptivos com baixa eficácia. Também foram exibidos os depoimentos de padres falando a respeito de casos de aborto na Argentina. Um segundo vídeo trouxe números de abortos realizado no Brasil.

De acordo com o autor do livro O que você precisa saber sobre aborto e um dos palestrantes, George Mazza, a intenção dele é “lutar em defesa das mulheres que são silenciadas pelos homens”, a afirmação criou um constrangimento e provocou intervenção de uma ouvinte: “Só tem uma mulher aí entre vocês, que só foi chamada por último. Será que ela irá falar?”, protestou uma estudante. Em resposta Mazza provocou: “Sou mulher também, esse é meu lugar de fala. Vocês não dizem que tudo é ideologia de gênero? Eu sou mulher! Sou Georgina e irei falar agora”. “Homens podem sim falar de aborto porque já foram um feto”, apoiou um dos organizadores do evento.

O autor, equivocadamente, faz referência ao tema estudado pela filósofa Djamila Ribeiro em seu livro O que é lugar de fala, onde a intenção é marcar direito de fala do outro, dando importância, também, ao seu lugar social e vivências específicas individuais, que tendem a ser silenciadas dentro da estrutura social.

Evento UFBA Pela Vida / Imagem: Jefferson Hora

A estudante do Bacharelado Interdisciplinar em Artes, Manuela Santana, o classificou como machista o evento. “Eu achei um evento machista, onde só tinha umas cinco mulheres aí dentro e a gente. E as que estavam eram brancas e de classe média”.

A psicóloga Manuela Cordeiro, uma das palestrante, apresentou o projeto Sentido de Viver, idealizado após a morte de sua sobrinha com três meses de vida, por conta de um problema no coração é que, em sua visão, mostra que toda vida tem importância é um papel específico na sociedade. Durante sua fala ela associou o aborto nazismo e ao genocídio, adotou o termo raça e reforçou a promessas da religião cristã para o Homem.

A estudante do curso de Letras, Júlia Nunes, contou à nossa equipe que gostaria de ter ficado até abrir as perguntas, mas considerou o evento como um “grande desrespeito”. “Tratar de sexualidade fazendo piada é ridículo, assim como foi a postura dele (George Mazza) de começar a gritar com a menina – não irei entrar no mérito de quem estava certo ou errado – mas, ele como expositor deveria esperar ela falar para depois debater. A discussão é algo válido em um evento, porém só existiu argumentos fúteis, inválidos e provocativos”, considerou a estudante.

Durante o evento, os organizadores arrecadaram fraldas, alimentos e produtos de higiene pessoal para ajudar as gestantes de projeto mantido pelo Instituto Pró-Vida. O grupo realiza encontros para estudos e debates de assuntos conservadores dentro da universidade a cada 15 dias.

Vale ressaltar que, a realização dos eventos, que nos trouxe a marcação de pontos de vistas diferentes e importantes para serem apresentados, comprova o lugar da universidade: de construção de argumentos, por meio de debates e exposição de pontos de vistas, elementos centrais no exercício da democracia no espaço acadêmico.

*Estudantes do curso de Jornalismo da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia e repórter na Agência de Notícias em CT&I – Ciência e Cultura UFBA.

*Estudante do curso de Produção Cultural da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia e designer na Agência de Notícias em CT&I – Ciência e Cultura UFBA.

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