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Atualizado em 28 DE fevereiro DE 2019 ás 20:38

Epidermólise Bolhosa e a medicina desumanizada

Mães relatam suas trajetórias durante descoberta e tratamento dos filhos com Epidermólise Bolhosas, no estado do Ceará. Em depoimentos, elas avaliam o atendimento no serviço médico e a falta de conhecimento e de auxílio dado às famílias dos pacientes com a doença, panorama que se estende a todo país

POR ANA GENEROSO*
generoso.a.carolina@gmail.com

Doenças consideradas “raras” possuem baixa prevalência quantitativa nas sociedades, porém, incapacitam os portadores de forma severa e crônica. Hoje, dia 28 de fevereiro, celebra-se o Dia Mundial das Doenças Raras com o intuito de tornar visível a realidade enfrentada diariamente por portadores, família e profissionais de saúde.

As pesquisadoras Andrea Caprara e Maria do Socorro Castro, Universidade Estadual do Ceará (UECE), publicaram o artigo: Hermenêutica e narrativa: a experiência de mães de crianças com epidermólise bolhosa congênita; em que analisaram a narrativa de três mães, Fátima, Conceição e Assunção, com crianças portadoras de Epidermólise Bolhosa (EB) no Ceará.

A EB é uma rara condição congênita que se caracteriza pela produção de vesículas ou bolhas após atrito ou fricção sobre a pele. A cuidadosa e contínua higiene do paciente, de seu ambiente e das pessoas ao seu redor são de extrema importância para evitar a infecção secundária das lesões cutâneas. Em bebês, isso implica uma necessidade de “mínima manipulação”, isto é, retirar do berço apenas para dar banho, uso de roupas de baixa fricção ou melhor ainda não colocar roupas, e não acariciar a criança.

Segundo o National Epidermolysis Bullosa Registry (NEBR), registro nacional norte-americano de EB, a doença atinge cerca de 20 bebês em um milhão de nascidos vivos. Por não possuir similar instituição ou registro, semelhante estimativa não pode ser feita para o Brasil.

O artigo aborda os desafios maternos em cuidar de um bebê com EB: o estigma e consequente isolamento proporcionado pela aparência da pele lesionada; a negligência estatal no fornecimento de remédios; o apego à fé católica; e o luto ao perder um filho. Mas também valoriza as redes de solidariedade, apoio e instrução construídas entre as mães de crianças com EB através da internet.

Assunção tem duas filhas, uma de dezoito e outra de dez anos, ambas têm a EB. Muitas vezes teve de recorrer à jornais e emissoras de televisão para pedir ajuda financeira para adquirir remédios, alimentos e produtos de higiene antes de conseguir o benefício do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS).

Conceição, moradora da zona rural do Ceará e católica devota, é a principal cuidadora do seu filho de quatro anos com a doença. Na época da descoberta, ela foi informada que o filho não sobreviveria mais de vinte dias. Segundo seu relato às pesquisadoras, após o parto, ela foi encaminhada para a capital: “Fui encaminhada para Fortaleza e lá o médico e, um bocado de estudantes olhando, disse que era muito grave e que ele não passava de vinte dias [...]..e eu estava com três dias do resguardo, chorei muito [...] e, quando eu estava em uma sala sozinha, um estudante me acalmou dizendo que eu confiasse em Deus”.

Fátima compartilhou com as pesquisadoras o seu sofrimento ao ver falecer, em seus braços, sua filha de sete meses de idade na hora do banho. Hoje, ela integra grupos de apoio e solidariedade para famílias que convivem com o EB, apesar de um pouco receosa. “Mesmo sabendo das individualidades de cada uma, tive medo [...], também tenho cuidado ao aproximar-me de outros doentes, porque temo que minha experiência possa ser desestimulante”, admite Fátima.

Essas três mães foram unidas por Fátima graças às redes sociais, onde compartilham experiências com a doença e sua compartilhada fé católica para enfrentar as dificuldades do dia a dia. Caprara e Castro enfatizam: “As mães (re)constróem a história, não como de sofrimento ou dor, mas com profundo sentimento de esperança e fé, em que as limitações e dificuldades cotidianas são superadas nos momentos da realização dos sonhos possíveis”.

O tratamento de uma condição rara e crônica como a EB deve ser multidisciplinar com cuidados não só paliativos e tópicos, mas também com atenção especial para os fatores psicológicos e a tensão econômica que acometem a família dos pacientes. Ao compartilhar a narrativa dessas mães, as pesquisadoras denunciam uma medicina desumanizada que não se aproxima dos pacientes com compaixão para instruir.

As autoras relatam também a pobre relação médico-paciente, sobretudo no caso de Conceição: “O relato de Conceição aponta a não-observância do contexto social pelo profissional ao referir tão delicado assunto, revelando a necessidade de humanização da prática médica”.

Elas identificam uma possível raiz do problema como o ensino da Medicina no qual: “não existe tempo para perder com análises sobre a interdependência das relações, fragmenta-se o corpo e passa-se a compreender as partes, desmembrando o indivíduo, descontextualizando-o”. A Abordagem de Caprara e Castro denunciam o déficit de disciplinas dos cursos de Medicina que tratem do aspecto emocional tanto do paciente quanto do profissional de saúde.

A medicina evolui enquanto ciência com novos tratamentos e remédios cada vez mais sofisticados, porém, sobretudo a brasileira, peca na relação com o outro. Numa busca pela objetividade clínica, ela compromete a humanidade daqueles que trata. O paciente torna-se apenas um corpo a ser manipulado pela ciência. Caprara e Castro rejeitam esta conduta, defendendo que: “Uma melhor relação médico-paciente não tem somente efeitos positivos na satisfação dos usuários e na qualidade dos serviços de saúde. Vários estudos mostram que influencia diretamente sobre o estado de saúde dos pacientes”.

Referências:

Hermenêutica e narrativa: a experiência de mães de crianças com epidermólise bolhosa congênita

Rare Diseases in Latin America: Challenges and opportunities for the equitable attention and proposal of Patients Organizations

*Estudante do curso de Jornalismo da Faculdade de Comunicação e repórter na Agência de Notícias em CT&I – Ciência e Cultura UFBA

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