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Atualizado em 2 DE maio DE 2019 ás 08:54

Audre Lorde: autoafirmação, intersecção e poesia

Pesquisadoras e ativistas baianas e alemãs estiveram presentes no evento que discutiu a vida e obra da poetisa norte-americana, Audre Lorde, além de lançar o documentário "Audre Lorde - Os Anos em Berlim - 1984 a 1992", dirigido pela cineasta e socióloga alemã Dagmar Schultz

POR GIOVANNA HEMERLY*
gihe296@gmail.com

“Negra, lésbica, mãe, guerreira e poeta”, era com essas palavras que a ativista política estadunidense, Audre Lorde, autoafirmava-se. Considerada, hoje, um dos grandes expoentes do feminismo interseccional afro-americano, ela via nas palavras sobre autoafirmação o potencial para defesa e desconstrução da imposição cultural hegemônica. “Se eu mesma não me definir, eu seria esmagada nas fantasias de outras pessoas e comida viva”, dizia Lorde.

Foi através da militância em defesa da população negra e LGBT que a autora de Sister Outsider criou laços com a comunidade afro-alemã, na década de 1980, em especial com movimento de mulheres negras lésbicas alemãs, no qual foram trabalhados temas como identidade, autocuidado e autodenominação. Era através do diálogo, da arte, da escrita e da poesia que Audre Lorde auxiliava essas mulheres na construção de uma consciência negra alemã, enquanto oferecia ferramentas para o combate ao preconceito e discriminação daquela época. Hoje, suas obras são referência em pesquisas sobre raça, sexualidade, identidade e gênero no mundo inteiro.

Imagem: Giovanna Hemerly

E, para mostrar as obras, vivências e lutas de Audre Lorde no período em que esteve na Alemanha, o Programa Integrado em Gênero e Saúde (Musa/UFBA), em parceria com o Goethe Institut, promoveu o lançamento na Bahia do documentário Audre Lorde – Os Anos em Berlim – 1984 a 1992, dirigido pela cineasta e socióloga alemã Dagmar Schultz e traduzido pela primeira vez para o português por Jéssica Oliveira, do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura da UFBA (PPGLitcult). O documentário traz o material gravado pela cineasta, com narração da própria Audre.

“Assim que ela chegou eu senti a necessidade e a importância de registrar sua estadia lá na Alemanha”, contou a diretora Dagmar Schultz, que esteve presente durante o lançamento na capital baiana. Além de relatar ao público como foi o período que conviveu com Audre Lorde e como decidiu produzir o documentário, a cineasta falou mais a respeito da produção audiovisual e como houve uma constante preocupação com a captura das falas de Audre, sendo uma das intenções do projeto dar à ativista o poder de contar sua própria história. “Era muito importante tirar fotos e gravar vídeos, mas também gravar os áudios porque, desse modo, a própria Audre poderia falar no filme”, explicou.

Imagem: Giovanna Hemerly

A ideia de ser protagonista da própria história é, inclusive, o ponto chave para entender não só o objetivo do documentário, mas o próprio trabalho de Audre junto à comunidade negra, LGBT e feminista. Para a professora da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB) e coordenadora do Coletivo Ângela Davis, Ângela Figueiredo, “o filme é um convite a uma reflexão sobre o lugar da identidade como parte prioritária do processo de ‘quem sou eu e para onde eu vou’”. Durante o evento, a professora destacou como o trabalho de Lorde foi capaz de discutir o processo identitário, não só por meio da autoafirmação racial, sexual e de gênero, mas também na autodenominação da nacionalidade. “A todo tempo ela está sinalizando os limites de identidade e diferença, e também a dupla pertença. Há muitas falas interessantes sobre ‘Eu sou afro, mas sou alemão! e esse mundo que me manda voltar para casa não compreende o que é se sentir ao mesmo tempo afro e alemão’, ou no caso de Lorde, se sentir ao mesmo tempo negra, lésbica e poeta”, afirmou.

O evento lotou o auditório do Instituto de Saúde Coletiva da UFBA / Imagem: Giovanna Hemerly

“Onde estão as pessoas negras alemãs?” - Na década de 1980, o racismo não era um assunto abertamente discutido na Alemanha. Pessoas negras, nascidas no país, tinham sua identidade enquanto cidadãs alemãs não reconhecida. Desta forma, este segmento social era invisibilizado, silenciado e isolado, sendo destinado a sofrer todo tipo de violência e violação de direitos. Foi nesse contexto que Audre Lorde chega ao país a convite de Dagmar Schultz, na época professora da Universidade Livre de Berlim, para ser docente visitante na universidade, iniciar um tratamento contra o câncer e dar início aos projetos de militância social que marcariam a história e vivências da comunidade afro-alemã.

Schultz conta que o primeiro impacto tido por Lorde ao chegar no país foi notar como a comunidade afro estava invisibilizada. “Onde estão as pessoas negras?”, teria perguntado ela ao perceber que os espaços públicos e de poder eram ocupados apenas por pessoas brancas. Apesar de na época a comunidade negra na Alemanha não ser tão populosa, a situação também era uma evidência das marcas históricas deixadas pela experiência colonial alemã em países do continente africano e pela Segunda Guerra Mundial, evento no qual a população negra em diáspora passou por explorações e foi lançada à condição de marginalidade social que viria perdurar por vários anos depois no país.

Dagmar Schultz, diretora do documentário sobre Audre Lorde / Imagem: Giovanna Hemerly

“Antes que a Audre fosse a Berlim, ninguém na Alemanha se interessava por nós”, relatou Ika Hügel-Marshall, escritora afro-alemã e co-roteirista do documentário sobre Audre Lorde. Filha de mãe alemã branca e de um soldado negro estadunidense da Segunda Guerra Mundial, que só veio conhecer depois de adulta, Ika sofria sozinha as opressões por ser a única garota negra em uma comunidade racista, sendo inclusive instruída, desde a infância, a acreditar que pessoas negras eram imorais e inferiores. Contudo, a convivência com Audre Lorde trouxe novas perspectivas acerca da sua identidade, além de abrir seus caminhos para o mundo da literatura. “Como vocês podem ver no documentário, Audre me incentivou muito a escrever o meu livro, que agora inclusive já tem uma tradução para o inglês”, disse a escritora.

Seu livro, que em inglês recebeu o nome de Invisible Woman: Growing Up Black in Germany, retrata o impacto do racismo ao longo de seu desenvolvimento, o sentimento de aversão contra si mesma, surgido deste impacto, e como se deu a luta pela sua autoaceitação. Foi com esta obra que Ika ganhou uma das edições do Audre Lorde Literary Award, prêmio literário anual concedido para poetisas lésbicas.

Ika Hügel-Marshall, co-roteirista do documentário / Imagem: Giovanna Hemerly

Apesar de ainda existir o preconceito e a discriminação racial, a Ika afirma que “A Alemanha é hoje um país multicultural”, já que houve nos últimos anos um crescimento de grupos sociais minoritários. A escritora, que atualmente integra o ADEFRA (Afro-Deutsche Frauen), movimento social de mulheres afro-alemãs, conta que os grupos minoritários estão criando uma relação de união, apoio e trabalho mútuo. “De fato, conseguimos nos encontrar enquanto afro-alemãs e fazer trabalhos políticos juntas. Hoje em dia há um encontro anual e nacional de pessoas afro na Alemanha, além de trabalharmos em conjunto com outras minorias. Inclusive lá tem também um grande grupo de brasileiros e brasileiras com quem nós trabalhamos juntos”, relata.

“Não existe hierarquia de opressão” - “No Brasil é um desafio ser negro, mas ser mulher negra é muito difícil!”, afirmou a professora coordenadora do ODARA – Instituto da Mulher Negra e integrante do Grupo Assessor da Sociedade Civil da ONU Mulher, Benilda Brito, durante o evento. A professora, que participa de movimentos feministas e negro desde de a década de 1980, relatou, com base nas ideias de Audre Lorde sobre interseccionalidade, como a luta da mulher negra tem uma singularidade perante às reivindicações de mulheres brancas e homens negros, e como essa singularidade, apesar de urgente, tem sido desconsiderada dentro dos próprios movimentos sociais. “Tem uma especificidade que é nossa e que é gritante. E só quem é mulher negra sabe do que eu estou falando, sabe qual é a dor e a delícia de carregar essa identidade”.

Desde 1960, Lorde já chamava atenção para a interseccionalidade existente entre os grupo minoritários, tornando-se assim uma das grandes pioneiras a tratar do assunto no feminismo. Foi nesse período que a ativista denunciou a relação de opressão ocorrida dentro do próprio movimento feminista, sinalizando como as questões colocadas por mulheres negras eram subjugadas diante das pautas colocadas por feministas brancas. Audre Lorde afirmava que para sujeitos interseccionais, como no caso de mulheres negras lésbicas, a opressão ocorre de forma simultânea e não categorizada. Ou seja, o racismo, o machismo e a lesbofobia acontece ao mesmo tempo porque a identidade dessas mulheres é vivida como um todo e não de forma fragmentada, declarando assim não existir hierarquia de opressão, já que nenhum grupo social tem mais direito de viver livre da intolerância que qualquer outro grupo.

A ativista social Benilda Brito associou o pensamento de Audre Lorde às questões de interseccionalidade no Brasil / Imagem: Giovanna Hemerly

A partir dessa concepção de Lorde, Benilda Brito ressalta que as problemáticas enfrentadas por um grupo social devem entrar também na pauta de discussões de outro grupo, justamente por existir um ponto interseccional entre ambos. “Quando uma mulher negra sofre racismo, tem que ser uma preocupação de todo movimento LGBT+. Quando alguém do movimento LGBT+ sofre lgbtfobia tem que ser toda uma preocupação do movimento negro. Porque muitas mulheres negras são lésbicas e muitas mulheres lésbicas são negras”, enfatizou.

“Como pensar essa relação entre tensões possíveis, alianças possíveis e afetos possíveis?”, questionou a coordenadora do Coletivo Ângela Davis, Ângela Figueiredo, sobre essa relação de diferenças e igualdades entre os grupos sociais. Para ela, apesar das características distintas de cada grupo e a necessidade de preservação da própria identidade, há também a urgência de união e respeito nas lutas sociais, especialmente diante da atual conjuntura do país. “Nesse contexto político que vivemos agora, é preciso pensar, como Audre sugere, essas formas, por um lado de autocuidado, mas também pensar nas alianças possíveis”. Segundo a coordenadora, a separação entre os grupos sociais não tem origem na diferença, mas sim, na resistência em reconhecer e respeitar as particularidades de cada grupo.

Para a pesquisadora Ângela Figueiredo, as tensões entre grupos sociais e a necessidade de aliança têm sido um grande desafio nas lutas sociais / Imagem: Giovanna Hemerly

“Seu silêncio não irá te salvar” - Durante o lançamento do documentário sobre Audre Lorde, as pesquisadoras e ativistas convidadas discutiram também as ideias da poetisa afro-americana acerca do medo, assunto abordado na própria narrativa do filme. Para Lorde é justamente esse sentimento que leva diversas mulheres em situação de violência e opressão a silenciar-se como uma tentativa de se proteger. No entanto, Audre alertava que, diante de suas experiências acerca do seu próprio silenciamento, calar-se é apenas mais uma forma de violência contra a própria autoafirmação. “Somos ensinadas a respeitar o medo mais do que nós mesmas”.

De acordo com Ângela Figueiredo, um dos pontos altos do documentário é justamente a retratação da poesia e da arte como uma arma para superação do medo. Ângela lembra que foi também através de seus poemas que Audre conseguiu notoriedade para as causas da mulher negra lésbica. Diante disso, a pesquisadora afirma que trazer a luta social para produção, tanto artística como científica, é uma forma de combater o silenciamento que surge frente a preponderância da intolerância e violência contra os grupos sociais minoritários. “O que eu acho que a gente está pensando é a nossa condição acadêmica como uma arma. Muitas de nós não tem a poesia, eu mesma não tenho habilidade para ser poeta, mas tenho feito da minha experiência acadêmica uma arma de luta contra o racismo, o sexismo, a homofobia e todas formas de desigualdade”.

A militante Tharcia Purificação relembrou o pensamento de Audre acerca do autocuidado, preservação da identidade e coletividade / Imagem: Giovanna Hemerly

“É importante que a gente consiga disseminar a informação entre nós”, afirmou a Integrante da Coletiva Brejo, Tharcia Purificação, a respeito de como a quebra do silenciamento pode fortalecer a luta das mulheres negras lésbicas. Para Tharcia, como só uma mulher negra lésbica pode entender de fato as vivências e os sentimentos de outra mulher negra lésbica, o compartilhamento das experiências entre essas mulheres contribui para fortalecer o sentimento de identidade e união e tornar-se assim ferramenta no combate ao medo e ao isolamento. “Estes pequenos momentos que vivenciamos e partilhamos da nossa vida umas com as outras, nos faz fortalecer e nos restituir da identidade que nos foi tirada”.

Contudo, Tharcia Purificação ressalta que, durante o processo de enfrentamento, é importante também a autorreflexão para buscar identificar a origem dos sentimentos que impedem o combate à opressão. E questiona: “Que medos são esses que a gente ainda não consegue perceber em nós, mas que ainda faz a gente se paralisar e não se movimentar?”. Pois, na visão da militante, a autodeterminação e o autoconhecimento de Audre Lorde possibilitou e ainda possibilita que diversas mulheres negras lésbicas possam enxergar na poetisa o enfrentamento de seus maiores medos, já que a identidade também é construída de forma coletiva, não apenas individual, como coloca o atual modelo hegemônico. “Eu sou porque somos. Não sou sozinha. Essa é uma ideia vendida dessa sociedade branca e ocidental que coloca a individualidade como um caminho a ser seguido”, destacou.

A pesquisadora Jéssica Oliveira do PPGLitcult da UFBA realizou as traduções do documentário, do evento e dos poemas de May Ayim / Imagem: Giovanna Hemerly

Além das discussões sobre a vida e a obra de Audre Lorde, o evento contou também com o lançamento do livro “Você é Afro-alemã?”, que contém poemas escritos por May Ayim, poetisa afro-alemã, incentivada a realizar-se também na arte da poesia por Lorde, durante o período que conviveu com ela no país germânico. A tradução dos poemas faz parte do trabalho de mestrado “May Ayim e a Tradução da Poesia Afrodiaspórica de Língua Alemã” (2018), da pesquisadora Jéssica Oliveira que participa atualmente do PPGLitcult da UFBA.

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