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Atualizado em 16 DE julho DE 2016 ás 00:00

A luta contra a operacionalização das universidades

Em abertura do Congresso UFBA, que comemora 70 anos da instituição, a professora e filosofa, Marilena Chauí, liga o alerta e levanta a bandeira contra a universidade que opera, mas não age

POR LUCAS GAMA*
lucasgama@gmail.com

Foi um convite audacioso, pois a filosofa veio apresentar, na abertura do Congresso UFBA, realizado até domingo, 17, suas opiniões, previamente publicadas, sobre o processo que ela denomina de operacionalização das universidades, colocando em cheque a atual dinâmica de funcionamento das instituições públicas de ensino superior, do país. A universidade, na opinião de Marilena, tem assumido um papel de organização, adotando a mesma lógica que se administra um shopping center ou uma empresa. A filosofa vê isso como negativo ao argumentar que as organizações são espaços que gerenciam os seus interesses, nos moldes capitalistas, equalizando tudo como mercadoria, ao mesmo tempo gera uma “fragmentação de todas as esferas da vida social”. Para ela, isso é muito perigoso, pois, se o ensino for tratado como uma mercadoria, pode “podar” a função da universidade, que é, originalmente, a de servir a comunidade, como uma instituição social que tem um papel (social) a cumprir.

Ao lado do reitor e também filósofo João Carlos Salles, Marilena Chauí reflete sobre a universidade como ela é e como deve ser | Foto: Reprodução da página oficial do Congresso UFBA

Para Marilena, as instituições sociais se caracterizam pelas suas “diferenças internas [...], ao contrário das empresas [...], que operam como entidades homogêneas”. “Cada uma [instituição social e organização] é diferente e traz resultados diferentes”, firmou Marilena. Para a faculdade ser plena em seu papel, ela deve ter o poder de criar e pesquisar sem a obrigatoriedade de produzir, sem que a meta a ser cumprida seja ter um Lattes mais competitivo. A professora argumentou que as pesquisas na universidade devem ter o papel de questionar e olhar, por outro ângulo, o que já foi feito, ao mesmo tempo que também é preciso consolidar uma tradição de pensamento. “A pesquisa serve para pensar”, simplificou. Na mesma tangente, ela enfatizou que o ensino deve pensar em quebrar paradigmas e incitar o pensamento.

Contudo a filosofa e professora da USP percebe que o modelo atual intensifica uma simplificação da docência. Em primeiro plano parece estar uma formação de mão de obra especializada para o mercado de trabalho, a partir de uma transmissão rápida de conhecimentos, cada vez mais “ilustrados”. Em texto, ela descreve: “o professor é contratado ou por ser um pesquisador promissor que se dedica a algo muito especializado, ou porque, não tendo vocação para a pesquisa, aceita ser escorchado e arrochado por contratos de trabalho temporários e precários, ou melhor,“flexíveis”.

Sua crítica à operacionalização da universidade ganha corpo ao listar os entraves que as universidades de todo o país vive atualmente: “o aumento insano de horas-aula, a diminuição do tempo para mestrados e doutorados, a avaliação pela quantidade das publicações, colóquios e congressos, a multiplicação de comissões e relatórios etc. Virada para seu próprio umbigo, mas sem saber onde este se encontra, a universidade operacional opera e por isso mesmo não age. Não surpreende, então, que esse operar co-opere para sua contínua desmoralização pública e degradação interna. Marilena Chauí citou as universidades públicas de São Paulo, como “modelos” dessa lógica organizacional, dando como exemplo as pesquisas que servem como forma de competição entre graduandos e mestres e a estrutura da faculdade ( horário de aulas, grade curricular) que visa apenas o mercado.

Pinxação anônima traduz sentimento e opiniões argumentas na abertura do congresso UFBA 70 anos
Pinxação anônima traduz sentimento e opiniões argumentas na abertura do congresso UFBA 70 anos.  | Foto: Reprodução

Apesar das suas opiniões serem fortes e um tanto antagônicas com a comemoração dos 70 anos da UFBA – ainda mais, proferidas três dias após a UFBA ser apontada como a melhor universidade do nordeste, em um ranking feito pelo Center for World University Rankings, avaliada a partir de critérios que podem ser contabilizados e que priorizam a produtividade e a gestão -, a convidada não quis apagar a vela da festa, ressaltando que o seu discurso não passava de um alerta para os riscos que podem ameaçar a universidade, como uma amiga a dar conselhos para a UFBA não fazer isso ou aquilo. Na segunda parte da sua apresentação, Marilena Chauí apontou o caminho para as universidades perceberem que é possível emancipar-se e reassumir o seu “socialista”, tecelando seus argumentos contra a operacionalização com a ideia de “servidão voluntária”.

Como dito anteriormente, Marilena ressaltou que as universidades, enquanto instituições tem “a sociedade como princípio”. Ao longo da conferência, ela pincelou o caráter múltiplo e instável do ambiente universitário, como algo que não é simples (de enquadrar e limitar),  assim como a sociedade. Uma natureza que não tem um controle e que, por natureza, não pode ou deve ser controlada. “[Por isso que é um ambiente] perigoso, ameaçador e ameaçado, que deve ser gerido, programado, planejado e controlado por estratégias de intervenção tecnológica e jogos de poder.”. No momento em que a universidade entra no jogo para se firmar e atingir um alto grau de produção e eficácia, como uma organização, as universidades vão assumindo características próprias, abrindo mão das suas características originais. De certa maneira, ela se vende. Passa a servir algo de maneira voluntária.

Ao ler um trecho do Discurso sobre a Servidão Voluntária, ensaio da idade média francesa do filósofo político Étienne de La Boétie, Marilena sublinha que é preciso lembrar que se a servidão é voluntutária, existe uma escolha em jogo. “A servidão voluntária é uma condição social e ideológica [...], servidão se opõe a vontade. Ou é servidão ou é vontade”. Assim, há um consentimento. “Aceitamos tiranos, porquê em troca, esperamos ser tiranetes”. Da mesma maneira, aceitamos servir alguém, ou algo, esperando que alguém nos sirva. A ideia se aplica à universidade, que de certa maneira se vende em troca de algo. Vende-se para ter melhores pontuações, que por sua vez garante maiores privilégios. Ao mesmo tempo, é também uma forma de poder – relembrado por Marilena, no provérbio  ”conhecimento é poder”.

Para Marilena, “servidão voluntária é contrária à natureza”. Ela resume: “A pesquisa não é servil a modismos”, e em outro momento complementa “a pesquisa suscita efeitos, [e por isso,] exige autonomia”.

Pode-se interpretar que para as universidades encerrarem esse ciclo vicioso da operacionalização e garantir seus princípios “naturais”, é preciso encarar de frente a sua servidão voluntária e ir de encontro,  compreendendo que se perde algo nisso daí, mas que é a forma para não se perder a essência da universidade.  Para fechar o ciclo, é preciso abrir mão.

Assista ao vídeo, na íntegra, da noite de abertura do Congresso UFBA


*Estudante de Jornalismo na Faculdade de Comunicação da UFBA e estagiário da Agência de Notícias em CT&I – Ciência e Cultura

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