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Atualizado em 22 DE novembro DE 2011 ás 20:35

Daniel Micha

Mestre em física pela Universidade Federal do Rio de janeiro (UFRJ) e professor do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (Cefet), o físico Daniel Micha é um partidário da aproximação entre a ciência e a sociedade e, recentemente, enviou uma carta à Sociedade Brasileira de Física convocando os cientistas a se aproximar mais da sociedade, evitando a apropriação indevida do discurso científico por produtos como a pulseira "Power Balance". Nesta entrevista, ele afirma que há uma banalização do modo como a ciência é tratada, discorre sobre a falta de tradição brasileira na pesquisa aplicada, entre outras coisas

Por Raíza Tourinho*
raizatourinho@yahoo.com.br

Ciência e Cultura – O senhor acredita que há uma banalização no modo em que a física, principalmente a quântica, é tratada atualmente. O senhor poderia explicar um pouco os limites desta modalidade?

Daniel Micha - Sim, as teorias físicas (e de modo geral, científicas) para a compreensão da natureza estão sendo distorcidas nos veículos de comunicação. Hoje, a ciência goza de muito prestígio frente à sociedade e isso credibiliza o discurso científico. Dessa forma, basta dizer que algo foi comprovado cientificamente que todo mundo acredita e compra, literalmente, a ideia.

O que ocorre com a física quântica é que ela traz um jeito novo de compreender os fenômenos físicos. Porém, seus conceitos só se aplicam ao mundo atômico e subatômico. Não podemos extrapolá-los para o mundo macroscópico de qualquer maneira (essa extrapolação é possível e resulta nas leis macroscópicas da mecânica: as leis de Newton). Dessa maneira, a teoria quântica se torna de difícil compreensão, pois não podemos fazer analogias com o mundo clássico. E é esse o grande erro que vem acontecendo por aí. Por exemplo, quando queremos, por algum motivo, saber a posição de um elétron em um átomo não o podemos fazer sem um mínimo de incerteza associada (princípio de incerteza de Heisenberg), o que significa que não podemos saber a trajetória que ele descreve ao longo do tempo. Existe um filme, muito famoso, chamado “Quem somos nós” que se utiliza desse conceito de incerteza aplicado (erroneamente) ao mundo macroscópico. Nele, podemos ver uma cena onde um menino quica uma bola de basquete no chão e ela se transforma em várias (indicando a probabilidade de ela poder estar em vários lugares ao mesmo tempo), numa tentativa de mostrar que diversas realidades podem ocorrer simultaneamente. Em termos de física quântica, isso está incorreto.

É bom ressaltar que, como tudo em ciência, ainda há coisas em aberto na física quântica, principalmente na compreensão da transição para o mundo macroscópico.

Ciência e Cultura – A crença em produtos miraculosos, como a pulseira “Power Balance”, acontece devido à ausência de educação e divulgação científica mais efetiva? Como os cientistas e a mídia podem contribuir para reverter esse quadro?

Daniel Micha - O caso da pulseira Power Balance é, ultimamente, um dos maiores exemplos de banalização da física quântica. Seus inventores e os propagadores da ideia afirmam que um certo holograma quântico na pulseira interage com o corpo de quem a usa, provocando um maior equilíbrio, bem estar e alcance dos movimentos. Já há estudos demonstrando que os efeitos da pulseira são por conta do efeito “placebo” (o mesmo que faz se sentir melhor um enfermo que toma um comprimido A acreditando ser B) e a própria empresa, em sua versão australiana, já noticiou a falta de comprovação experimental de seu produto.

A crença nesses produtos miraculosos poderia ser evitada com uma educação mais contextualizada e uma divulgação científica mais ampla. Para que isso aconteça, é necessário que o cientista saia de seu casulo. O que vemos, hoje, no meio científico é um descaso em relação ao compromisso com a sociedade.

“A crença em produtos miraculosos poderia ser evitada com uma educação mais contextualizada e uma divulgação científica mais ampla”

Quanto à mídia, poderiam filtrar um pouco mais as falácias científicas. O ideal é que todos os canais de comunicação consultem um especialista antes de publicar qualquer item de qualquer assunto. É claro que a visão científica do universo não é a única existente, devemos respeitar outras concepções. Mas, quando querem falar de ciências que o façam pautados no rigor inerente ao proceder científico.

Ciência e Cultura – A prática de fazer a interseção entre a academia e a sociedade ainda é pouco usual, ao menos na Bahia. Esse distanciamento contribui para o nosso “atraso científico”? A mentalidade do próprio fazer científico, que prioriza quantidade (de artigos científicos) em vez de qualidade (de ações), também não agrava a situação?

Daniel Micha - Esse problema existe na maioria dos estados brasileiros, não só na Bahia. Ultimamente, por conta da carta que enviei à Sociedade Brasileira de Física expondo meu descontentamento em relação à falta de intercâmbio entre academia e sociedade, tenho recebido notícias de algumas iniciativas no sentido de desmistificar a ciência. Não poderia deixar de citar o programa “Fronteiras da Ciência”, mantido no ar pela rádio da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde há um esforço diário em transmitir à sociedade a “verdade” científica.

Engana-se quem acredita que o saber científico só é útil para os acadêmicos. Uma sociedade mais integrada com o mundo onde vive e com as tecnologias a que tem acesso só se realiza com conhecimento. Mas não um conhecimento dogmático. Precisamos questionar mais e duvidar sempre. Dessa forma, seremos realmente livres. Ou escravos de nossa própria busca pela verdade (se é que ela existe).

A questão das publicações científicas é bastante política. Assim como qualquer atividade onde não é possível se fiscalizar de perto, o que valem são os números, principalmente no que tange a financiamento. Organizar ou participar de uma mostra científica, dar uma entrevista ou produzir material para divulgação não são consideradas atividades tão nobres quanto à publicação de artigos em revistas científicas especializadas. É difícil apontar uma solução para esse problema. Talvez, a pontuação diferenciada das atividades por algum órgão regulador possa ser uma saída. Enfim, dependemos, hoje, da boa vontade e do bom senso daqueles que enxergam nessas ações uma contribuição importante para a sociedade.

Ciência e Cultura – A educação científica é pré-requisito para o desenvolvimento de qualquer sociedade. Recentemente, a presidente anunciou o programa Ciência Sem Fronteiras, que promete posicionar melhor o País no cenário científico mundial e desenvolver o C&T. Realmente a área está avançando? Ou ainda se está muito aquém do que deveria?

Daniel Micha - Sim. A ciência no Brasil vem avançando a passos largos e compara-se à produzida por países desenvolvidos (somos o 15º país em número de publicações internacionais segundo o grupo de pesquisa SCImago Journal & Country Rank). Da maneira que a ciência é feita no país, o que nos falta, hoje, é infraestrutura. Nossos laboratórios são precários, os funcionários acabam desmotivados pela falta de planos de carreira (ou apáticos pela estabilidade de seus empregos públicos) e alia-se a tudo isso a enorme burocracia do setor público. O programa “Ciência sem fronteira”, que prevê a capacitação de 75.000 pessoas em intercâmbios internacionais em quatro anos, podem nos ajudar com a experiência trazida do exterior. Essa experiência não se traduz somente no conhecimento teórico ou prático adquirido com as atividades científicas lá fora, mas também com a captação das ideologias e concepções de como se tratar a ciência aqui no país.

“É necessário que o cientista saia de seu casulo. O que vemos, hoje, no meio científico, é um descaso em relação ao compromisso com a sociedade”


O que aqui está muito aquém em relação a países de ponta é a área de inovação tecnológica. Fazer com que as pesquisas saiam do laboratório para as prateleiras não é uma prática brasileira. Enquanto os investidores não perceberem a mina de ouro que lhes escapa das mãos todos os dias, a área de inovação no Brasil não avançará. E quando olharem para nós, acredito que, tudo vai mudar até mesmo o jeito de fazer ciência no país.

Ciência e Cultura – O senhor poderia explicar um pouco da sua pesquisa com materiais semicondutores nanoestruturados no desenvolvimento de fotodetectores de infravermelho?

Daniel Micha - Detectar a radiação infravermelha pode ser muito útil. Os materiais e dispositivos que pesquisamos em nosso laboratório são, justamente, para esse fim. Desde os sensores de presença e os controles remotos do dia-a-dia até as câmeras de imageamento térmico usados em clínicas médicas e em guerras vemos as inúmeras possibilidades de aplicação desses dispositivos.

Os materiais semicondutores são conhecidos e utilizados em eletrônica há dezenas de anos (quase todos os dispositivos tecnológicos, hoje, possuem pedaços desses materiais). Porém, além das propriedades elétricas interessantes, há também bastante recurso óptico explorado nesses materiais (os lasers e LEDs são exemplos dessas propriedades). A propriedade que utilizamos para a confecção dos fotodetectores (sensores) de infravermelho é a conversão da energia luminosa da radiação em energia elétrica na forma de um sinal de corrente ou tensão elétrica. Ao incorporar nanoestruturas (com tamanhos da ordem de um bilionésimo do metro) nos materiais semicondutores, o comportamento quântico das partículas subatômicas, como o elétron, se pronuncia ainda mais. Dessa forma, temos um dispositivo que se vale da física quântica para funcionar e, por esse motivo, surgem propriedades novas nos materiais.

Em nosso laboratório, na PUC-RJ, pesquisamos diversos tipos de materiais semicondutores bem como diferentes nanoestruturas incorporadas a eles para que se adequem a aplicação a que estamos interessados.

Ciência e Cultura – Muitos pesquisadores acreditam que a ciência básica vem sido preterida em detrimento da ciência aplicada, a sua área. O senhor concorda?

Daniel Micha - Sim, concordo. Temos, no Brasil, a tradição de pesquisar ciência básica. Essa modalidade de pesquisa é muito bonita, pois nos ajuda a ampliar nossa compreensão sobre a natureza, a busca de qualquer cientista (ou ser humano, de modo geral). Porém, é a pesquisa com ciência aplicada que se compromete a resolver os desafios e necessidades da sociedade. Precisamos distribuir melhor as pesquisas e os pesquisadores nessas duas áreas de modo a equilibrar a prática da ciência no Brasil.

Acredito que as experiências internacionais que serão proporcionadas aos pesquisadores no programa “Ciência sem Fronteira” devem ajudar a nos fazer perceber a importância desse equilíbrio, já que em outros países, a área de ciência aplicada costuma ser mais contemplada. A consequência imediata dessa mudança de modelo científico seria o avanço da inovação tecnológica, uma vez que estaríamos dispostos a criar soluções para problemas mais práticos.

Considerações finais

A ciência, notadamente, vem ganhando credibilidade ao longo do tempo. Isso está acontecendo porque, de sua maneira, ela vem ajudando o homem a compreender, prever e manipular a natureza. O resultado mais espetacular da atividade científica, hoje, a meu ver, é o aumento na expectativa média de vida ao nascer, que mais que dobrou em relação à metade do último século. Ao perceber todos os benefícios trazidos pela ciência, o homem passa a tê-la como base para a compreensão do mundo que o cerca.

A física, uma das ciências mais antigas, também fascina a todos nós. Somos ávidos por explicações. Quem, quando criança, não se questionou sobre o azul do céu, a formação da chuva, o surgimento de um arco-íris, o “poder” de um imã? Queremos entender o mundo e o universo ao nosso redor. Ao longo de séculos, para que esse conhecimento pudesse ser confiável e de caráter universal, os cientistas criaram um conjunto de regras para o estabelecimento de uma descoberta científica: o método científico. É através do uso criterioso desse método que podemos nos certificar de que estamos diante de um fato testado e comprovado por um conjunto de especialistas no assunto.

Espero que depois dessa conversa, você, leitor, tenha uma postura mais crítica sobre aquilo que ouve e diz sobre ciência. Se estiver em dúvida sobre a veracidade de um produto ou discurso, busque informação, consulte um especialista, mas não se deixe enganar pelas tais “curas quânticas”, segredos, pulseirinhas, etc.

*Estudande de Jornalismo da Faculdade de Comunicação da Ufba – Facom

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Antônio Ferreira da Silva

Olival Freire Jr.

Um comentário a Daniel Micha

  1. Diego Esteves disse:

    Excelente artigo! A percepcao da necessidade de amadurecimento na educacao do nosso Pais eh tao importante quanto a descoberta de novas tecnologias para a Sociedade. A evolucao eh potencializada quando esse par caminha em passos largos. Parabens.

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