Um dos países mais conectados do mundo presencia o crescimento das notícias falsas nos últimos anos e seu potencial de influência na política brasileira.
Anderson Gomes
Desinformação e mentiras sempre percorreram o cenário político. Porém, na era da informação instantânea, as chamadas fake news — expressão eleita em 2017 como a “palavra do ano” pelo dicionário britânico Collins — vêm se consolidando como um dos principais obstáculos da política atual. Segundo um estudo realizado pela UFRJ durante o segundo turno das eleições presidenciais de 2022, houve um aumento na circulação de notícias falsas. A média diária de mensagens falsas cresceu de 196,9 mil antes do primeiro turno para 311,5 mil depois.
O professor do Departamento de Ciência Política da UFBA, Renato Francisquini Teixeira, explica que a política é um terreno de disputas discursivas, em que a palavra tem importância central. Portanto, não existe um caminho único para se chegar ao que poderia ser denominado “verdade”.
“Já que a gente está nesse terreno lidando com conceitos que são essencialmente contestáveis, no terreno do justo, da liberdade, da democracia, a gente está sempre num debate para chegar a formulações que sejam mais adequadas. Muitas vezes as formulações vão ser as mais adequadas às nossas próprias concepções sobre o que é uma vida digna, sobre o que é o bem comum, o interesse do mundo”, afirma o professor.
Além disso, ele explica que, historicamente, a política sempre se valeu de estratégias argumentativas para convencer a população de que determinado caminho, grupo ou decisão seria o mais adequado. O problema atual, segundo Teixeira, está no esforço de certos grupos em falsificar o que se denomina verdade factual. Esses grupos surgem em um contexto de mundo fragmentado, ou seja, polarizado. As pessoas passam a acessar apenas informações que reforçam seus próprios conceitos políticos — o que, por sua vez, fortalece a disseminação de notícias falsas, já que se torna difícil saber se “há uma realidade compartilhada entre as pessoas”.
No dia 14 de janeiro, o deputado federal Nikolas Ferreira (PL) publicou um vídeo em suas redes sociais que atingiu mais de 100 milhões de visualizações em apenas um dia. No vídeo, ele insinuava que o Pix poderia ser taxado futuramente, que o governo Lula vigiaria movimentações bancárias de trabalhadores informais como se fossem sonegadores e que tiraria o sigilo fiscal do “cidadão comum e empreendedor” — o que não era verdade.
A publicação do deputado aumentou ainda mais as discussões nas redes sociais sobre o assunto. O governo acabou revogando a medida, e o próprio Banco do Brasil divulgou um vídeo desmentindo as afirmações.
O professor explica que as plataformas digitais possuem um enorme potencial de alcance, o que as torna atrativas para que políticos conquistem um público cativo e obtenham sucesso eleitoral — como é o caso de Nikolas Ferreira. Apenas no Instagram, ele tem quase 19 milhões de seguidores e foi o deputado federal mais votado do país e da história de Minas Gerais, em 2020, com mais de 1,4 milhão de votos. Segundo a agência de marketing digital AtivaWeb, após o vídeo sobre o Pix, o engajamento do deputado ficou acima da média para criadores de conteúdo político, e seu número de seguidores aumentou em 10,5%.
Por ser parlamentar, explica o professor, a tendência é que as pessoas acreditem nas informações compartilhadas em suas redes sociais — o que realmente aconteceu. Uma pesquisa realizada pela Quaest apontou que 67% dos brasileiros acreditavam que o governo cobraria uma taxa sobre operações financeiras por meio do Pix, enquanto apenas 17% não acreditavam nisso.
“Acho que cabe um debate sobre qual é o limite da liberdade de expressão — especialmente no caso de figuras proeminentes, como Nikolas Ferreira — e o amplo poder de alcance que elas têm para difundir notícias falsas”, comenta o professor.
O Brasil figura entre os países mais conectados do mundo: 89,1% da população acessa a internet, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD Contínua): TICs, que registrou um aumento de 6,1 milhões de pessoas conectadas nos últimos dois anos. Mais pessoas online significam também mais chances de acessar conteúdos falsos.
De acordo com o Instituto Locomotiva, quase 90% da população admite ter acreditado em fake news. Dentre elas, 57% acreditaram em informações falsas sobre economia e 51% sobre segurança pública e sistema penitenciário.
Buscar informações que reforcem convicções pessoais é um fator crucial para o compartilhamento de notícias falsas, segundo o professor Teixeira — especialmente em uma sociedade dividida.
“Isso leva para que elas radicalizem suas opiniões e posições. Esse é um fator que também contribui para o cenário que a gente vê de divisão da sociedade e para esse cenário de formação da opinião pública de forma tão fragmentada”, afirma.
Em 2020, foi aprovado no Senado o Projeto de Lei 2638/20, conhecido como PL das Fake News, de autoria do senador Alessandro Vieira (PSDB). Sua versão final foi protocolada pelo deputado federal Orlando Silva (PCdoB) em 27 de abril de 2023. O projeto buscava estabelecer mecanismos de regulamentação das plataformas digitais, para que estas impedissem a publicação de notícias falsas e discursos de ódio.
Após quatro anos de discussão na Câmara dos Deputados, o presidente da Casa à época, Arthur Lira, engavetou o projeto, alegando falta de consenso e polêmicas em torno do texto.
A PL ficou marcada pela forte divergência entre parlamentares. A oposição a apelidou de “PL da Censura”, alegando que o texto feria a liberdade de expressão. Circularam ainda notícias falsas afirmando que o projeto censuraria versos bíblicos nas redes sociais — desinformação impulsionada por publicações do deputado Deltan Dallagnol (Podemos-PR) e do senador Sergio Moro (União-PR).
Entretanto, as críticas não vieram apenas de políticos de direita. Segundo o professor Renato Francisquini Teixeira, o projeto também foi fortemente atacado pelas Big Techs — grandes empresas de tecnologia como Meta, Google e Amazon —, por meio de um lobby agressivo, temendo a interferência que a PL poderia trazer no controle que essas plataformas exercem sobre o debate público.
“Há evidências suficientes para a gente afirmar que elas (plataformas digitais) têm um impacto muito significativo sobre o processo deliberativo, que leva à formação da opinião, da vontade democrática, da visão das pessoas e da escolha que elas vão fazer no processo eleitoral. E elas fazem isso de uma forma pouco transparente, por exemplo, através dos algoritmos sobre os quais a grande maioria das pessoas não têm sequer uma compreensão mais adequada”, explica o professor.
Em 2026, mais de 150 milhões de brasileiros voltarão às urnas para escolher o próximo presidente do país. A última eleição presidencial, ocorrida em 2022, foi marcada por intensa polarização, desinformação sobre as urnas eletrônicas e uma democracia fragilizada — visto os eventos ocorridos em 8 de janeiro de 2023.
O professor afirma que, após os acontecimentos recentes, é provável que instituições como o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e o Supremo Tribunal Federal (STF) estejam mais preparadas para lidar com a propagação de fake news e outras instabilidades durante o processo eleitoral. Além disso, as pessoas tendem a estar mais atentas às informações que consomem.
O resultado dos julgamentos envolvendo os financiadores e participantes dos atos antidemocráticos, bem como daqueles que disseminaram fake news sobre o processo eleitoral, pode influenciar o comportamento de muitos eleitores nas próximas eleições.
“Devemos imaginar que as pessoas responsáveis por esse tipo de atuação — ao serem punidas — sirvam de exemplo para outras. Isso faz com que aqueles que planejam se valer dessas estratégias nas próximas eleições pensem duas vezes, sabendo que há possibilidade real de punição”, conclui o professor.