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Atualizado em 19 DE abril DE 2013 ás 18:17

Harmonia na roça Alto do Céu

"Eles sabem o valor da água e se preparam para garantir a vida, em todos os seus ciclos". Essa e uma das conclusões a que chega a jornalista Liliana Peixinho sobre o povo sertanejo, em seu sexto relato de viagem.

LILIANA PEIXINHO*
lilianapeixinho@gmail.com

Eles moram no alto do Bebedouro, numa casa de varandas, onde o vento assobia forte e refresca o calor do sol quente do dia pra embalar os sonhos de noites em estrelas de janelas abertas. O terreno é fértil, a cultura é farta, a coragem e fé são de sobra e a harmonia e o amor integram a paisagem, logo na chegada, com os latidos da cadela Veluda, e a abertura da porteira por uma criança encantadora, que tudo observa e pouco fala, pra fazer muito.

Se na Terra tem um paraíso, esse lugar pode ser a casa dessa família linda que fui visitar por uns 20 minutos e tive a sorte de voltar e aceitar o convite para comer uma buchada de bode. Desculpa pouca para tanto aprendizado durante os quatro dias de espera da troca da peça do carro. Convivência das mais harmoniosas nos meus 52 anos de vida.

Todos acordam muito cedo, inclusive Dudu. Ele é dessas crianças abençoadas, nas quais a coragem chega e não sai jamais. Ele encanta, naturalmente, pelos gestos nobres e corajosos, integrados com o ritmo da natureza. Ora célere como um redemoinho, ora suave como o cair de uma folha ao chão – e redemoinhos e folhas ao chão Dudu observa sempre na roça.

Na roça Alto do Céu Dudu abre a porteira para as visitas. Foto: Liliana Peixinho

Na roça Alto do Céu Dudu abre a porteira para as visitas. Foto: Liliana Peixinho

Quando levantam da cama, a sintonia para o trabalho era imediata, de forma natural e silenciosa.  Dedé vai pra dentro da mata virgem, ainda intacta, graças a eles, levar as cabras para comer. E lá, entre uma caça de nambú e outra, Dedé se perde no tempo. Olha para o céu e vê o Sol sob a cabeça e lembra que é hora de voltar pra casa, para almoçar. Como Dedé, todas as pessoas da casa têm o mesmo ritmo com os afazeres. A mulher, Silvia, planta, rega, colhe e cozinha; a nora, Vanilda, limpa, lava, arruma e perfuma; o filho, Braz, viaja, compra, vende conserta e constrói; o netinho, Dudu, faz um pouco de tudo, ao lado de cada um, semeando amor, união. Exemplo de coragem, desenha o futuro em pílulas diárias de ação do bem.

A casa é ampla, bem dividida, arejada e limpa – impecavelmente limpa. As panelas brilham, o banheiro cheira, a varanda convida para a conversa e a noite embala o sono, ao som de ventos e cores vivas de um céu iluminado por lua e estrelas que brilham em harmonia.

Tudo tem o tempo e sintonia certa na casa de Dudu. A cadela, Veluda, é tão educada que na experiência de ver e ajudar a fazer a buchada de bode ela fica ao lado das pessoas que estão tratando as carnes, quietinha, com a cabeça encostada na laje e o corpo espreguiçado, porque sabe ser longa a espera para ganhar a sua parte das poucas sobras das carnes. O aproveitamento do bode é total, mas Veluda é amiga, corajosa, vigilante e protetora, e por isso tem o direito de comer do que comemos.

Família de Bebedouro se reune na cozinha da casa. Foto: Liliana Peixinho.

Família de Bebedouro se reúne na cozinha da casa. Foto: Liliana Peixinho.

A melancia é pequenina, comprida, mas suculenta. É tão deliciosa que dá vontade de comer até a casca, bem fininha e limpinha, sem nenhum veneno, bem diferente daquelas que estamos acostumados a comprar nos supermercados. Os umbus sim, esses são enormes, suculentos e doces. Cresceram no ritmo do tempo, da terra, ora seca, ora molhada. Mas sempre generosa com o fruto.

Os ovos das galinhas de quintal têm gemas douradas, quase avermelhadas de tanta proteína natural. Na cozinha de Sil, o fogão fica ao lado da pia, que fica próximo a janela, onde resíduos de alimentos orgânicos como chuchu, abóbora, melancia, tomate, talos de coentro, cascas de alho e cebola são jogados pela janela e alimenta as galinhas. As cabras e porcos, de plantão, participam do mesmo ritual.

A harmonia é assim, perfeita. E nesse ritmo não existem sobras que formem lixo. Quando se resolve, como eu, fazer uma festa de aniversário, evento raro numa casa onde o orçamento tem destino certo em prioridades importantes para garantir a saúde, vá lá que se permita comprar um refrigerante para festejar e brindar a vida. Aí a embalagem já tem reuso garantido, seja para guardar água – ouro líquido do Sertão – ou mesmo para guardar grãos, como feijão. Nada se perde nessa roça. O pouco lá é muito, porque espaço para sentar, andar, correr e transitar é muito mais importante que ocupar com coisas sem valor de harmonia local.

Na roça Alto do Céu, a família de Silvia e Dudu cuidam da água. Foto: Liliana Peixinho.

Na roça Alto do Céu, a família de Silvia e Dudu cuidam da água. Foto: Liliana Peixinho.

Mesmo numa seca que dura mais de 14 meses, na roça do alto do céu, como estou chamando esse paraíso de lar, tem tudo plantado, regado duas vezes ao dia, com um regador de mão de 3 litros. Eu ajudei a molhar uma horta com melancia, maxixe, abóbora, coentro, cebolinha, alface, tomate. Claro que isso acaba morrendo, porque a chuva demora e não tem água permanente. Mas é só a chuva cair, mesmo que em pouco tempo. Mas só se for forte, como a última que caiu em novembro de 2012, por menos de 20 minutos, e provocou enchentes e levou cabeceiras de rio abaixo com dezenas de cabeça de gado.

Lá em cima, essa água da chuva ficou na roça, em muitos tanques naturais que foram construídos em sistemas de captação de chuvas pelo telhado, que vai direto pra cisterna. Eles sabem o valor da água e se preparam para garantir a vida, em todos os seus ciclos. Por isso, Sil e toda a sua família pode garantir um verde quase milagroso numa paisagem árida, ao longe, com pastagens ao fundo, aqui e acolá, ameaçando uma mata rica em ouricuri, juá, arueira, baraúna, umburana, pau de rato, umbuzeiro, calumbi, quebra-facão, incó, macambira, malva, capimacu, xique-xique, mandacaru e uma biodiversidade inteira, integrada a essa mata catingueira.

+SECA: SERTÃO ADENTRO

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* Liliana Peixinho é jornalista, especialista em  Jornalismo Científico e Tecnológico, com atuação em Mídia, Meio Ambiente e Sustentabilidade. Ativista socioambiental, fundadora dos Movimentos Amigos do Meio Ambiente (AMA) e Rede de Articulação e Mobilização Ambiental (RAMA).

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