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Atualizado em 16 DE outubro DE 2025 ás 14:27

Medicina: a corda bamba entre desvalorização e acessibilidade

A Agência de Notícias analisou o cenário do curso de medicina no Brasil e a relação com seus estudantes

Eric Tavares

Nos últimos anos, a busca pelo curso de medicina pelos vestibulandos brasileiros aumentou de maneira exponencial. A ideia de um bom ganho de dinheiro vem atraindo muitos jovens para a área, que se tornou a mais disputada entre todos os cursos de ensino superior no Brasil.

O ponto de partida para a criação do curso de medicina no Brasil tem a responsabilidade direta de Dom João VI, então príncipe regente de Portugal. Em 1808, já na América, concedeu a criação da Escola Cirúrgica da Bahia, em Salvador, no Terreiro de Jesus, o primeiro curso de medicina da colônia e que muitos anos depois seria integrado à Universidade Federal da Bahia (UFBA).

A escolha da Bahia foi política: a coroa precisava do apoio dos baianos para pacificar a colônia. “No Brasil, que era a América Portuguesa, muitos desses médicos e pessoas que trabalhavam dentro da cidade de Salvador tinham que ir para Coimbra, em Portugal, para se formar enquanto médicos. Não se tinha ainda uma organização ‘civilizatória’, entre aspas, sobre o desenvolvimento da ciência da universidade”, explica Henrique Garcia, historiador graduado pela UFBA. Na época, barbeiros eram dentistas e cirurgiões; para os escravos, sobrava utilizar ervas, raízes e outros ingredientes que encontravam na natureza para amenizar o sofrimento das doenças tropicais.

Vista do Terreiro de Jesus, em 1862. À direita, o Colégio dos Jesuítas, atual Catedral Basílica, sede do curso de medicina da época. Reprodução: Wikipédia

“A gente tem que ter muita noção e clareza nesse período que o cargo de medicina – que ainda é, mas naquele período ainda mais – era da elite branca da sociedade. Precisava de muito dinheiro para poder ter a influência para entrar numa faculdade”, comenta Henrique. Ele complementa que, no período, a área de medicina recebeu intervenções das teorias eugenistas e do darwinismo social. Nelas, o branco era considerado superior ao negro, que tinha um viés natural para ser menos inteligente e, consequentemente, inferior. No Brasil, um dos principais nomes dessa corrente era Nina Rodrigues, que dá nome ao Instituto Médico Legal (IML) da cidade de Salvador. “Então, ela, de certa forma, representou isso. Hoje, há políticas de inclusão para a população negra tentar acessar mais os cursos, mas ainda é um acesso complicado”, complementa.

“A gente costuma ouvir muito lá dentro que a nossa geração vai ser uma das últimas em que o curso vai ser valorizado, que vai ser bom financeiramente”, comenta Maria Eduarda Lopes, mulher preta de 19 anos que atualmente está no 1° semestre do curso de medicina na Faculdade Zarns, uma instituição de ensino privado. “Eu acho que o que tá acontecendo é que ele está ficando mais acessível. Toda a estrutura de ensino do Brasil talvez esteja mudando para que as pessoas possam sonhar, e não só sonhar, mas realizar e adentrar nesses cursos que antes eram feitos para serem inacessíveis”, complementa a ‘mediciner’ (termo utilizado para referenciar uma pessoa que quer ou está cursando o curso de medicina).

A percepção de Lopes está correta. O Brasil vem formando mais médicos com o passar dos anos. Segundo a “Demografia Médica no Brasil 2025”, relatório feito pela Faculdade de Medicina da USP, o Ministério da Saúde, a Associação Médica de Saúde e a Organização Pan-americana de Saúde, o Brasil deve encerrar 2025 com mais de 600 mil médicos em atividade no país. O número é um recorde absoluto: em 2010, o país contava com pouco mais de 304 mil médicos; em 1980, 113 mil. Os valores aumentaram de forma constante, com o censo prevendo que o Brasil contará com mais de 1 milhão de médicos formados em 2035. Essa população será mais nova e feminina.

Há várias explicações para o aumento da quantidade de médicos no país. Uma delas é a grande oferta de cursos de medicina desde 2010. Na Bahia, era oferecido, principalmente, por duas instituições: a UFBA e a Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública. Em 2012, a UNEB tornou-se a segunda universidade pública do Estado a oferecer o curso de medicina. Desde então, o curso de medicina na capital é oferecido por diversas instituições públicas e privadas de ensino, como UniFTC, UniFACS, UniDOMPEDRO, Zarns e entre outros.

A quantidade gera preocupação em muitos que analisam a área. Sendo uma resposta direta do mercado, elas teriam capacidade para gerarem bons profissionais? O termo ‘uniesquina’, desde então, tem sido usado para se referir a parte dessas instituições para representar o suposto nível de qualidade da sua educação. Programas como o FIES alavancaram ainda mais as universidades privadas, criando um mercado em torno do curso de medicina, que se expandiu para o ensino superior como um todo. Para muitas pessoas, como Lopes, as faculdades privadas, no entanto, são caminhos para realizar o sonho de conseguir o jaleco.

Para ela, há falta de matérias que aproximem o médico da realidade social da cidade, ocasiando em “uma pessoa que trabalha com pessoas e não conhece a realidade social delas”. Essa divisão, por exemplo, ocorre até nos campos da UFBA: enquanto os cursos sociais ficam espalhados pelos campus de São Lázaro e Ondina, direito e medicina, historicamente excludentes, tem sede no Canela, consideravelmente afastado dos outros dois. Não apenas isso, mas como todos os cursos da área de saúde são distantes uns dos outros. A separação é resultado da infraestrutura da cidade, mas não deixa de ser simbólica.

Mesmo com a expansão dos cursos privados, nenhum deles conseguiu derrubar a UFBA do pedestal de desejo dos ‘mediciners’. “Quando sai o resultado do SISU e você vê que tá aprovado, é uma coisa que eu comento com minha mãe, meu pai e meus amigos”, explica Ian de Jesus, estudante de medicina na UFBA, atualmente no 4° semestre. Ele conta que as pessoas o tratam de maneira diferente após descobrirem seu curso e universidade. “Então, querendo ou não, o jeito que a sociedade te enxerga é diferente”.

Para Ian, o motivo para preferir a UFBA é diverso: melhores professores, infraestrutura, oportunidade de contatos, pesquisa e a falta de um boleto no final do mês. “Fazer medicina não é algo fácil. Você precisa de um hospital e escola, de peças para anatomia. São muitos fatores para ter uma formação médica de qualidade”, comenta. Uma infraestrutura deficitária para estudantes de medicina pode acabar levando a erros na vida profissional, que custam, literalmente, vidas.

O cenário, além disso, não leva somente ao sucateamento do profissional, mas também às condições de infraestrutura dos locais de trabalho. UPAs e hospitais sem remédios, equipamentos para cirurgia ou consultas de qualidade. Nesses locais, crescem a quantidade de relatos de desconforto ou consultas desagradáveis. Mesmo com estimativas de mais de 1 milhão de médicos em 2035, filas no SUS e escassez de profissionais no interior ainda são problemas recorrentes para quem utiliza o serviço público.

Quem não consegue ingressar em medicina pelo SISU tenta utilizar métodos diferentes para pegar a sua vaga, dentre eles está o Bacharelado Interdisciplinar (BI). “O BI me trouxe uma percepção muito diferente do que eu tinha em relação à área de saúde e cursos de saúde”, explica Rosa Paola, estudante do BI de saúde. O curso é flexível para o seu estudante, oferecendo liberdade para escolher as matérias de sua formação e para qual curso deseja se direcionar. Na UFBA, ele se divide em quatro: humanidades, ciência e tecnologia, artes e saúde, sendo comumente utilizados por seus estudantes para acessar cursos concorridos, mas também por aqueles que estão indecisos sobre qual caminho deseja seguir. Mesmo com isso, não existe um perfil exato de um estudante de BI.

Rosa ingressou no curso para migrar para medicina futuramente. Ela não é a única que tenta isso, mas quer seguir um caminho diferente e aproveitar o que o curso oferece. “As pessoas até estranham quando vê outra pegando uma matéria artística, de música, dança ou qualquer outro assunto. Tipo: ‘como assim você não tá tentando a todo custo pegar uma matéria da área de saúde?’”.

O curso acaba virando somente um meio para entrar em medicina, muito longe da sua ideia inicial. “As pessoas acabam perdendo essa oportunidade de realmente vivenciar o curso por causa desse pensamento de ‘Quero migrar para medicina. Quero passar em medicina’ e estão usando o BI apenas como uma ferramenta para conseguir alcançar esse objetivo”, explica Rosa.

Medicina é um ecossistema que se alimenta desde o pré-vestibular até o mercado de trabalho. O médico, por sua parte, é essencial para a nossa vida. Graças a ele, sabemos o que comer, qual remédio tomar, a doença que nos ataca, as vacinas que nos protegem e etc. Precisamos sempre cuidar para que esse profissional seja o mais qualificado possível, pois, acima de tudo, precisamos dele para viver.

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