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Atualizado em 23 DE junho DE 2023 ás 20:39

Salvador: as raízes de uma “cidade de papel”

As origem das tragédias anunciadas nos períodos chuvosos da primeira capital do Brasil.

POR BEATRIZ NASCIMENTO

Pode entrar e sair ano que os soteropolitanos já sabem que no outono devem desenterrar os “capotes” (o casaco de frio baiano) do fundo do armário. Esse é o momento que chegam os períodos de chuvas intensas e clima consideravelmente mais frio para os habitantes da capital da Bahia. Ainda que nessa época, principalmente entre abril e junho, esses temporais sejam previsíveis, todos os anos Salvador encara alagamentos, deslizamentos de terra e desabamentos de imóveis em diversos pontos da cidade.

Foto: Portal Alô Alô Bahia

Em nota publicada em abril de 2023, a Defesa Civil de Salvador (Codesal) afirmou que a média de chuvas ainda em março de 2023 superou média histórica dos últimos anos: “ao longo do mês de março choveu 150,2 milímetros (mm), aproximadamente 2% a mais do esperado para o mês (normal climatológica), que é de 147,3 mm”. Já entre março e abril desse mesmo ano, foram registradas vistorias de mais de 365 ameaças de deslizamentos de terra, 292 de alagamentos de imóveis, 168 infiltrações e 110 ameaças de árvores prestes a cair. Os órgãos da prefeitura de Salvador repetidamente criam medidas para fazer que esses casos sejam menos danosos, inclusive a evacuação de moradores que vivem em áreas de risco. No dia 08 de junho de 2023, feriado nacional de Corpus Christi, a Codesal acionou a sirene que indica alerta máximo de riscos durante as chuvas na Comunidade Bosque Real, no bairro Sete de Abril. Os moradores foram orientados a deixar suas casas e se alojar em um abrigo provisório na Escola Municipal Novo Marotinho.

Não sendo o medo de chuvas intensas exclusivo de um ponto ou outro da cidade, Valdineia Conceição, moradora do bairro de São Cristóvão, queixa-se que sempre neste período a água da chuva alaga as ruas e invade a casa da população de seu bairro. “Eu moro no segundo andar, mas na última grande chuva, a água entrou na sala da minha cunhada e molhou tudo. Foi uma sorte muito grande a tv estar na parede, mas os móveis ficaram em uma situação terrível e alguns foram pro lixo”, diz. “A gente costuma brincar que Salvador não aguenta nem mesmo um sereno de chuva, mas a situação é séria. Entra e sai ano, mudam prefeitos, secretários, e a situação continua igual. O problema é que chove e a água não tem para onde correr”.

O QUE FAZ A PREFEITURA?
Diante de eventos que não são apenas fenômenos meteorológicos, mas de ordem geográfica, urbana e social, a gestão da capital baiana necessita de medidas que busquem a prevenção de tragédias a longo prazo, não soluções que minimizem as consequências dessas.

Em consulta ao Querido Diário, uma ferramenta de busca criada com o intuito de facilitar o acesso aos Diários Oficiais das cidades brasileiras, foi encontrado que desde fevereiro de 2001 a prefeitura da cidade de Salvador considerou necessário manifestar, por meio de seu diário oficial, ações preventivas para conter e minimizar os danos durante os períodos de fortes chuvas no município por meio de uma “Operação Chuva”.

Ao delimitar a busca do termo “Operação Chuva” ao ano de 2023 — o mesmo de produção dessa reportagem —, foi possível encontrar a intensificação do investimento dessa ação em cerca de R$127 milhões de reais em 2023. De acordo com o diário oficial de 31 de março desse mesmo ano, foram reforçadas ações de limpeza de canais e córregos, limpeza de bueiros, vistorias técnicas de imóveis, drenagem de águas lançadas em encostas, além de outras medidas preventivas de acordo com os níveis de risco em períodos chuvosos.

Em contato com a Secretaria de Comunicação Social (SECOM), a Agência de Notícias da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (AGN) questionou o órgão acerca das ações realizadas durante períodos de grandes chuvas, enquanto o mesmo reforçou as ações de redução de danos comandadas por diversas secretarias em parceria com a prefeitura da cidade. “Com caráter preventivo, de socorro, assistencial e recuperativo, as iniciativas são realizadas no âmbito da Operação Chuva, coordenada pela Defesa Civil de Salvador (Codesal)”, disse.

Apesar disso, adianta limpar bueiros e drenar rodovias sem repensar o (des)planejo urbano da primeira capital do Brasil?

DESMATAMENTO E RIOS VELADOS: AS HERANÇAS DA URBANIZAÇÃO DE SALVADOR
De acordo com especialistas, a recorrência dessa problemática na capital baiana é herança de uma cidade que não passou por um projeto de planejamento urbano que comportasse ações dessa natureza. No processo de êxodo rural durante o século XX, os rios existentes na cidade foram soterrados e canalizados para dar lugar a grandes prédios e construções comerciais.

Em entrevista à Agência de Notícias, Sanane Sampaio, doutora em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo (USP), afirma que as construções das principais vias de Salvador desrespeitaram princípios técnicos que viabilizem a infiltração e escoamento da água da chuva de um ponto a outro da cidade. “Aterraram lagoas e brejos, cortaram cursos de rios e interromperam canais naturais de drenagem, como o que aconteceu na Av. Paralela, por exemplo”, diz.

Os rios da capital baiana foram soterrados sob suas grandes avenidas, e com isso pode-se entender o motivo pelo qual ocorrem tantas inundações e alagamentos. A primeira grande obra de aterramento dos rios da cidade foi a construção da Rua da Valla sobre o Rio das Tripas, que hoje compreende a região de comércio da Baixa dos Sapateiros. De acordo com o livro publicado em agosto de 2018, ‘O caminho das águas em Salvador’, resultado do projeto de pesquisa ‘Qualidade Ambiental das Águas e da Vida Urbana’, os rios mais importantes do município (Rios dos Seixos, Rio das Pedras e Rio Lucaia), estão com a maior parte dos seus trechos encapsulados, o que torna o solo dessas regiões impermeáveis e impossibilita que a água da chuva seja absorvida.

Diante do processo de urbanismo precário em Salvador, Sanane reitera a ausência de políticas públicas durante o século XX para a oferta adequada de moradia e terras aos migrantes advindos do campo para a cidade. “A população pobre sempre precisou encontrar abrigo em locais desprezados pelo mercado formal de moradia, que são ou edifícios em bairros em processo de abandono, ou autoconstruções feitas em locais ambientalmente sensíveis, como encostas, áreas alagadiças e até mesmo em cima de corpos d’água”, afirma.

Em entrevista concedida à AGN, Fábio Mutti, professor pós-graduado em Recuperação de Áreas Degradadas pela Faculdade de Tecnologia e Ciências (FTC), explica que o urbanismo não-planejado trouxe à cidade diversos “vales”: regiões que alternam entre morros e locais baixos. Consequentemente, grande parte da água da chuva viaja para os locais mais baixos de Salvador, principalmente na Cidade Baixa. “Nesses pontos da cidade existem áreas onde um grande número de casas ocupa pequenos espaços, e o esgoto doméstico sequer é separado do esgoto que coleta as águas da chuva. Quando chove não existe esgoto para escoar essa água”, diz.

Fábio Mutti observa ainda a construção irresponsável em torno do Rio Camarajipe, na região próxima à Rótula do Abacaxi até sua foz no Jardim de Alah. “Ali observa-se muitas placas de concreto, o que faz com que seja perceptível que o rio foi pensado para tornar-se um esgoto, tanto para escoamento das águas pluviais quanto para as do próprio rio”, explica. “Lamentável, mas é o que vemos em Salvador”. Atualmente, o Rio Camarajipe, o principal da cidade de Salvador, é densamente afetado por ocupações próximas de suas margens, poluição e derramamento de esgotos residenciais.

Em junho de 2018, o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema) notificou a Prefeitura de Salvador sobre supressão de vegetação, bem como a interferência sobre o Rio Camarajipe para a construção do BRT (ônibus de trânsito rápido). Em dezembro do mesmo ano, a Fazenda Pública da Justiça Estadual e a Justiça Federal da Bahia suspenderam a decisão do Inema e autorizaram a continuidade da construção do BRT de Salvador. Para Sanane Sampaio, a tamponação de rios é uma ação arcaica. “Os efeitos prejudiciais à qualidade do meio urbano são demonstrados desde, pelo menos, os anos 1970, e obras como essa acontecerem em Salvador a partir dos anos 2000 é vergonhoso”, afirma.

Ainda que não seja de conhecimento comum, o desmatamento também é um protagonista de mudanças climáticas. A ausência de vegetação dificulta o solo de realizar o processo de drenagem natural nos meios urbanos, o que torna os dias chuvosos altamente propensos a criação de inundações, alagamentos e enchentes. A “Agenda 21”, aprovada pela Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, descreve a importância da atuação dos órgãos municipais para a manutenção e ampliação de áreas verdes. No entanto, Salvador cedeu a maior parte de suas áreas de vegetação para ocupações irregulares e mercado da especulação imobiliária, especialmente na Avenida Paralela.

Segundo o professor Fábio, é função da prefeitura da capital baiana incentivar a manutenção de áreas verdes na cidade e recompensar os cidadãos a plantar em suas áreas privadas. “Se você observar Salvador de 20 anos atrás, vai perceber que nós perdemos inúmeras árvores. A última grande perda de vegetação ocorreu em função do BRT, mas todo o crescimento urbano que se deu ali na Avenida Paralela, por exemplo, mitigou a vegetação e isso é muito ruim para a cidade”, afirma.

INICIATIVAS VERDE E AZUL, OU SOMENTE VERDE
Com o objetivo de mitigar ou até mesmo precaver os prejuízos à biodiversidade e fatores climáticos que a aceleração urbana (des)planejada trouxe aos centros urbanos brasileiros, algumas ações são planejadas por especialistas em diversas partes do país. Pensando nisso, pesquisadores da Escola de Administração de Empresas de São Paulo, em colaboração com a organização estadunidense Governos Locais para a Sustentabilidade, produziram o ‘Guia de Infraestrutura Verde e Azul’ voltado aos municípios brasileiros. Nesse documento, são expostas estratégias para a transformação das metrópoles brasileiras em cidades sustentáveis. O propósito é a conservação de florestas e agricultura, bem como a revitalização de rios e lagoas nos ambientes urbanos. Em contrapartida, a cidade de Salvador destrói sua Mata Atlântica e soterra seus rios em obras de ‘mobilidade urbana’, especulação imobiliária e ocupações irregulares.

Mutti afirma ainda não ser possível prever como serão as frequências da chuva em Salvador nos próximos anos. “No entanto, já é característico do clima da cidade a queda de grandes volumes de água em pequenos espaços de tempo”, diz. “Eu acredito que a prefeitura tem que incentivar a manutenção das áreas verdes e criar incentivos para que as pessoas plantem em suas áreas. É necessário divulgar à população ideias como a do IPTU Verde, pois a maioria desconhece”.

O “IPTU Verde” é uma iniciativa criada pela prefeitura da cidade que visa incentivar os empreendimentos imobiliários ou comerciais a adotar práticas sustentáveis em suas edificações. De acordo com as diretrizes do programa, os descontos para as construções e reformas sustentáveis são aplicados diretamente no Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU) dos cadastrados. “No pedido de ‘Habite-se’, a SEDUR, SECIS e SEMOP fiscalizarão a execução dos requisitos com posterior emissão do Certificado do IPTU Verde na categoria alcançada”, afirma o documento.

A longo prazo, é muito provável que não será suficiente se ater a políticas que amenizem os estragos que as chuvas causam em Salvador. E essas supracitadas, ainda que sejam parcialmente capazes de evitar os grandes problemas ambientais que inviabilizam a segurança da cidade em grandes temporais, não possuem ampla divulgação entre o brasileiro médio.

*Esta reportagem foi produzida com o apoio da Open Knowledge Brasil (OKBR), no âmbito do programa Querido Diário nas Universidades, e contou com o uso do ‘Querido Diário’, ferramenta de inovação cívica criada para abrir e integrar os diários oficiais. A iniciativa tem por objetivo aproximar o projeto Querido Diário às atividades de instituições de ensino e pesquisa brasileiras, potencializando seu desenvolvimento e impactos.

**Revisão e apuração: Cinthia Maria, Manoela Santos, Nathalí Brasileiro, Rebeca Almeida e Sofia Nachef.

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