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Atualizado em 19 DE outubro DE 2018 ás 19:24

Povos tradicionais, sustentabilidade e proteção da terra

Pesquisadores discutiram como o modo de subsistência e tradição dos povos latino-americanos contribuem para a utilização de recursos naturais sem gerar grandes impactos ao meio ambiente

GIOVANNA HEMERLY*
gihe296@gmail.com

Patcha mama, Gaia, Onilé, mãe natureza são diferentes nomes, colocados por diversas culturas ao redor do mundo, para representar uma mesma manifestação natural chamada de “mãe terra”. A relação de respeito e preservação que esses povos tradicionais latino-americanos possuem com a natureza foi tema de debate na mesa “Os Direitos da Mãe Terra: Uma Análise dos Povos e Comunidades Tradicionais da América Latina”, que aconteceu no auditório da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), durante o segundo dia do Congresso da UFBA 2018.

Imagem: Giovanna Hemerly

Tradição e preservação - O modelo de subsistência dos povos tradicionais têm base nos conhecimentos passados de geração em geração pelos ancestrais. Mãe Alda de Oyá, sacerdotisa do Candomblé, explicou a importância da terra para os praticantes desta religião afro-descendente.

Segundo a ialorixá, os ancestrais transmitiram através de lendas a necessidade de proteger o solo, já que é ele quem garante a sobrevivência do ser humano. “O Ilê Aiye, é a nossa casa, é a terra. A última sentença que Olodumaré determinou é que precisamos ‘pagar prenda para o solo’, no sentido figurado, pois precisamos tratá-la e cuidar bem dela. Mas é prenda dos vivos e dos mortos também, porque é nela que o nosso corpo descansa quando não existe mais vida”, afirmou a mãe de santo.

Imagem: Giovanna Hemerly

Tanto no Candomblé, como em outras manifestações tradicionais, a terra é reconhecida como uma entidade sagrada que, por estar relacionada a manutenção da vida no planeta, foi associada à figura materna. A especialista nos estudos da América Latina,  Natalie Lessa, reitera que essa visão personificada da natureza é fundamental por remeter à ideia de que ela é um sujeito de direito que precisa ser respeitada. “O primeiro princípio para esses povos é que a mãe terra não está dissociada, pois nós também somos ela. Então se fazemos mal para o nosso planeta, para nossa mãe, estamos fazendo mal a nós mesmos”, reforça Lessa.

De acordo com a especialista, a visão da terra como sujeito ao invés de um objeto de propriedade, meramente particular, serviu de referência para a produção de leis ambientais durante a criação do novo constitucionalismo latino-americano, adotado pela Bolívia e Equador, países com forte influência da tradição ameríndia. “Nesta constituição estava previsto os direitos da natureza e o direito de bem viver, de escolher como você quer viver, e não viver esse modelo individualista e eurocentrado imposto pelo capitalismo”.

Produção não sustentável - Apesar do avanço do novo constitucionalismo em adotar a cosmovisão dos povos e sua tradição de respeito à natureza, a ideia ainda predominante na maioria dos países da América Latina tem origem no modelo socioeconômico baseado na ideologia capitalista. A lógica mercantil e de exploração dos recursos a todo custo tem desprezado as práticas de sobrevivência dos povos tradicionais.

Imagem: Giovanna Hemerly

Hoje, a agropecuária é o modelo de produção prioritário na maioria dos países da América Latina. Segundo Natalie Lessa: “O que a gente vive hoje é a imposição  de um modelo único de produção de alimentos e de bens de consumo”. A agropecuária tornou-se uma forte ameaça a subsistência dos povos tradicionais por ser um modelo de produção que não permite a existência de outros como práticas que divergem da sua. E por ser utilizada por produtores ruralistas com forte influência no âmbito político, o racismo ambiental está sendo institucionalizado, negando aos povos tradicionais o direito ao território, acesso aos recursos naturais não poluídos e de manter suas práticas de subsistência.

Lessa alerta ainda que vários países latino-americanos estão perdendo sua biodiversidade e sua pluralidade por conta da monocultura, que prega o plantio em larga escala de espécies vegetais específicas e do latifúndio, que exige grande áreas de terra por não ser uma produção auto-sustentável. Para a especialista, os mais prejudicados são os povos que estão perdendo seu território e tradições de práticas agrícolas realizadas desde épocas anteriores ao descobrimento e, que hoje, estão sendo afetadas pelos produtos transgênicos e os agrotóxicos. “A semente da soja invadiu o território do Xingu e o veneno chegou também nesse território, matando essas formas de bem viver que já era cultivadas antes dos portugueses chegarem aqui”, disse Lessa.

Bancada ruralista - A bióloga e pesquisadora sobre comunidades e povos tradicionais, Júlia Borges, afirma que além de gerar impactos socioambientais, a elite ruralista brasileira tornou-se um dos principais obstáculos para projetos que visam recuperar os danos da degradação. Com uma forte representação no Congresso Brasileiro, esse grupo tem conseguido eliminar propostas que vão de encontro aos seus interesses. “No brasil a gente ainda tem uma estrutura latifundiária, a gente ainda tem no congresso uma bancada ruralista que é institucionalizada e fortíssima. E são grupos de interesse que estão atuando e dialogando constantemente”.

A bancada ruralista brasileira é um dos grupos políticos com maior poder de influência no parlamento / Imagem: J.Batista (Câmara dos Deputados)

Um exemplo citado pela pesquisadora sobre articulação política em prol desse grupo foi a reforma do código florestal, realizada em 2008. Dentre as medidas aprovadas, existe uma que perverte o conceito de sustentabilidade para servir aos interesses ruralistas, permitindo que  pessoas que degradaram terras, antes de 2008, fossem anistiadas. “A sustentabilidade implica em permitir que as novas gerações tenham acesso aos recursos e benefícios naturais que nós temos. Só que este é um conceito que muitos grupos de enfrentamento têm se apropriado, inclusive a bancada ruralista”, delata a bióloga.

Propostas que visam utilizar a terra de forma coletiva para o bem estar comum é outra questão também dificultada pela frente ruralista. Para Júlia Borges, a reforma agrária e a demarcação de terras são assuntos que não podem ficar de fora de discussões sobre preservação ambiental, pois também envolvem a necessidade de “Retirar a terra de uma lógica da economia mercantil em que ela tem o seu valor medido na bolsa de valores” em prol de questões de justiça social e sustentabilidade.

Julia explica que a ideia tem origem nos discursos do pesquisador espanhol Joan Martinez Alier. Em seu livro “Ecologismo dos Pobres”, Alier descreve este ecologismo como um tipo de ambientalismo que pensa a natureza como forma de sobrevivência. Por isso, partindo desta perspectiva, os povos tradicionais possuem uma tendência maior a não gerar grandes impactos ambientais porque sua cultura e tradição pregam a coletividade, o respeito aos ciclos naturais do planeta e o entendimento de que os recursos essenciais para a sobrevivência são finitos.

De acordo com Júlia Borges, as lutas de Chico Mendes pela defesa da floresta Amazônica entram no conceito de "ecologismo dos pobres", de Juan Martínez Alier / Imagem: Homero Sérgio (Folhapress)

O papel da universidade - Durante a discussão a pesquisadora Letícia de Souza reclamou a ausência do debate ambiental na esfera do direito, especialmente dentro das salas de aula da faculdade. “A gente está na faculdade de Direito e não vemos determinadas discussões que vão trazer fissuras a essa visão eurocêntrica de conhecer e reconhecer o direito”, afirmou.

Contudo, ela ressalta a importância de existir hoje na universidade um número maior de pessoas pertencentes a população tradicional, já que a presença deles contribui para a representação desse grupo social dentro do ambiente acadêmico. “Não basta os acadêmicos falarem por eles [povos tradicionais]. Eles estão aqui, estão na academia. Nós temos quilombolas e indígenas que estão aqui trazendo representação para seu povo e servindo de instrumento de luta”, disse a pesquisadora.

Já o professor e mestre em Direito pela UFBA, Geraldo Rui Almeida, reclama a necessidade das esferas públicas, inclusive as universidades, posicionarem-se em defesa das causas sociais e ambientais. “A corte constitucional brasileira ficou refém do lobby. É bom que se diga isso claramente numa mesa de debate, em especial, de uma universidade federal, porque é uma instituição que tem que se posicionar também quanto a esse respeito, porque estamos perdendo soberania, riqueza e território nacional”, lamentou.

Ganhador do “Prêmio de Melhor Curta Metragem no Festival Ambiental das Ilhas Canárias de 2016″, o documentário “Para Onde Foram as Andorinhas?”, Instituto Catitu e Instituto Socioambiental, aborda o impacto da agropecuária na subsistência dos povos indígenas do Xingu. Assista:

*Estudante do curso de jornalismo da Faculdade de Comunicação e repórter na Agência de Notícias em CT&I – Ciência e Cultura UFBA

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