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Atualizado em 17 DE junho DE 2020 ás 15:01

Luciana Quintão

Nos rastros da desigualdade social, tão importante, quanto urgente, é identificar atores sociais que trabalham, incansavelmente, para unir as pontas do desperdício aos que tem dificuldade em garantir o que comer. Nessa linha, vamos investigar quem desperdiça, como, por que e quem está na outra ponta, entrando numa logística cujo sistema econômico se revela perverso, irracional, desumano, ineficiente, de ponta a ponta. A Ong Banco de Alimentos, na Grande São Paulo, é exemplo multiplicador desse trabalho. Agora, em cenário de pandemia, entre os dias 01 e 28 de abril foram doadas 115 mil toneladas de alimentos

POR LILIANA PEIXINHO*
lilianapeixinho@gmail.com

Na entrevista, a presidente do Banco de Alimentos, a economista Luciana Quintão, destaca problemas sobre fome, desperdício, desnutrição no mundo e, em especial no Brasil, onde regiões como o Nordeste necessita de apoio a trabalhos como as campanhas históricas do Movimento AMA- Amigos do Meio Ambiente contra desperdícios. Na oportunidade, Quintão, que há 22 anos recolhe e distribui alimentos, em São Paulo, fala também da importância do trabalho em redes contra o desperdício no país.

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Liliana Peixinho: O projeto que você coordena na ONG Banco de Alimentos, reforça o foco sobre um dos maiores desafios humanitários: combater a fome contra o desperdício de alimentos. Poderia historiar, por favor, esse trabalho?

Luciana Quintão: Fundei o Banco de Alimentos Associação Civil (ONG Banco de Alimentos ou OBA) em 1998 para combater a fome, através do combate ao desperdício de alimentos. Naquela data tínhamos 57 milhões de brasileiros que viviam com meio salário mínimo para baixo e já éramos umas das 10 maiores economias do mundo! Por outro lado, 1/3 de tudo que é produzido no mundo vai para o lixo. Intervi nessa dinâmica cruel, passando a recolher alimentos perfeitos para o consumo, com todas as suas características nutricionais intactas, e doá-los às entidades assistidas para o nosso programa, as quais acolhem pessoas em situação onde risco social.

Liliana Peixinho: Desde sua origem o Ser Humano estar a criar condições para se alimentar. Como observa os processos produtivos no mundo e no Brasil, na perspectiva do alimento como fonte de prevenção de vida em saúde?

Luciana Quintão: Acredito que nem todos os processos produtivos tem essa preocupação motriz com o ser humano, pois independente do alimento ser ou não saudável, existe uma discussão primeira que é a se esse alimento chega à boca das pessoas. A resposta é que não chega e esta conclusão é de fácil compreensão: basta se quantificar o tamanho do desperdício e das pessoas que vivem em insegurança alimentar no mundo. Só no Brasil são 52 milhões de pessoas. Se o desperdício fosse um país, este seria o terceiro maior emissor de gás estufa do mundo, pela decomposição de restos de alimentos. A articulação para se ter o alimento como fonte de prevenção e de saúde das pessoas envolve outros agentes da sociedade.

Liliana Peixinho: Ao longo da História da Humanidade foram diversos os processos entre produção, consumo e descarte até chegarmos a modelos de mercados que hoje chamamos de commodities agrícolas, agronegócio, monocultura, produção em larga escala. Como observa o caminho percorrido pelo alimento do campo à mesa?

Luciana Quintão: Do campo a mesa? Bom alguém produz e alguém, se pode, compra.  Nesta relação existe inúmeras variações de tamanho do produtor com seu poder de ditar preços e ter lucros, até um pequeno agricultor que luta para sobreviver.  Fora os intermediários. Do campo à mesa, ocorre um longo caminho de perdas e desperdício de alimentos, seja no armazenamento, seja no transporte, seja no comércio, assim como na própria casa do consumidor mais abastado.

Liliana Peixinho: Observamos um engendrado sistema no processo de plantio: uso de solos, controle de produção, técnicas de colheita, logística de escoamento, até as prateleiras e consumidores.  Nesse cenário, como observa a qualidade da alimentação brasileira?

Luciana Quintão: A alimentação brasileira é precária para todos? Não! No entanto, para grandíssima parte da população brasileira é, já que não tem acesso aos alimentos. Outro ponto importante é que pessoas de baixa renda geralmente se alimentam mal, com grande quantidade de alimentos não saudáveis, inclusive com obesos desnutridos. Outra parte mais aquinhoada, também se alimenta com excessos e tem doenças provenientes da má alimentação. Sobre a qualidade da oferta de alimentos, pelos processos citados na pergunta, temos qualidade na produção do campo, porém, somos o país campeão de uso de agrotóxicos e isso não faz bem à saúde, como é do conhecimento geral.

Liliana Peixinho: Segundo dados da FAO, 95% das perdas de alimentos nos países em desenvolvimento ocorrem nos estágios iniciais da produção, principalmente por conta das limitações financeiras e técnicas. Além das dificuldades para armazenamento, infraestrutura e transporte, que também contribuem para o desperdício, cujas perdas é da ordem de 30 a 40 por cento de tudo o que se produz. Como gestora entre a ponta do desperdício e o combate a fome, especialmente no Brasil, país de tradição de fartura, por um lado, mas com muita falta, por outro, onde está o erro desse desequilíbrio em distribuição e acesso?

Luciana Quintão: A questão principal da falta de acesso aos alimentos é de renda. Este é o erro ou o X da questão. Equipamentos e programas sociais também são importantes para suprir a carência de acesso aos alimentos assim como suporte ao pequeno            agricultor.

Liliana Peixinho: Que sugestões a Banco de Alimentos apresenta na cadeia de desperdício quando vemos a contradição entre um mundo que produz muito, desperdiça bastante e peca em qualidade alimentar saudável, preventiva e adequada ao bem-estar de uma humanidade, que de forma geral, está muito doente?

Luciana Quintão: Eu sugiro um choque de realidade. Que a sociedade entenda o que está fazendo e se repense. Informação é muito importante, direção política e econômica também e muita, muita consciência individual e coletiva, assim como boa dose de empatia e solidariedade, inclusive com o meio ambiente, que também vem sendo castigado impiedosamente.

Liliana Peixinho: A capacidade de produzirmos alimentos em praticamente todas as regiões do planeta deveria ser indicativo contra a existência da fome. Mas, a realidade de países da África e mesmo de outros lugares, como o Brasil, acentua essa contradição. O que instituições internacionais e brasileiras planejam em fazer para garantir esse direito tão básico: o do bem se alimentar?

Luciana Quintão: Não sei o que as instituições mundiais e do Brasil vão fazer. Existem as Metas do Milênio que grandes países insistem em não praticar a contento, enquanto outros fazem a sua parte. No Brasil, crescem os bancos de alimentos de prefeituras e existe o bolsa família O que se precisa mesmo é ter mais cooperação no mundo todo e modelos muito mais eficientes de gestão e geração de renda com sustentabilidade na produção. Basicamente um novo modelo político e econômico, baseado nos interesses realmente humanos.

Liliana Peixinho: O planeta foi surpreendido, em pouco tempo, com uma pandemia, (a COVID-19 ), em que é explicada como sendo originada do Coronavírus, por conta do desequilíbrio entre a exploração humana da natureza e seus modos de consumo, inclusive com alimentação de animais exóticos,  como morcego  manipulado em ambientes com problemas sanitários. Como observa o mundo pós-pandemia em cenários de saúde e carência alimentar?

Luciana Quintão: A alimentação é o primeiro remédio, já dizia Hipócrates, corpo bem nutrido é mais resistente às doenças. Portanto, todos deveriam comer em condições saudáveis de higiene e do alimento em si. Acredito que a pandemia irá trazer uma grande reflexão com medidas práticas, até porque todas as economias do mundo sofreram com esta questão.

Liliana Peixinho: A Ong Banco de Alimentos divulga, em suas Redes Sociais, uma campanha com alta adesão pública de doação de alimentos para distribuir para pessoas com dificuldade de acesso a alimentos. Desde quando a equipe Banco de Alimentos, faz esse trabalho e como é a relação entre demanda, atendimento e a logística do trabalho?

Luciana Quintão: Certamente a demanda é muito maior do que conseguimos doar. Posso te dar os números do mês de abril, quando doamos 115 mil toneladas. Isso é maravilhoso e é uma resposta da sociedade neste momento de contração social ampliada. Nós fazemos esse trabalho há 22 anos, antes de nós, o Betinho, também existe programa do Sesc. Parece que agora a sociedade acordou para este grave problema. Um belo exemplo é o que acontece em São Paulo capital. e em várias outras cidades, mas, sabemos que a demanda é muito grande pelo Brasil todo, principalmente e historicamente, no Nordeste.

Liliana Peixinho: Qual a área geográfica de atuação da ONG Banco de Alimentos, como é a gestão para captação e aplicação dos recursos/produtos e a qual o perfil médio do doador?

Luciana Quintão: Grande São Paulo. A gestão é de uma empresa comum, mas sem lucros. Temos uma equipe com funções definidas e que orientada pelos gestores. Hoje, nossos maiores parceiros são empresas que trabalham com marketing relacionado à causa. Somos auditados, o que gera confiança nos doadores.

Liliana Peixinho: Regiões como o Nordeste do Brasil, historicamente em dificuldades de acesso a recursos como água- base de toda a agricultura- e com altos índices de desperdício em frutas, legumes, hortaliças, orgânicos de quintais, tem recebido apoio informativo, educativo, de mobilização e articulação socioambiental, através de diversas ações como imersões jornalísticas comunitárias, in loco, de coletivos como  Movimento AMA- Amigos do Meio  Ambiente, Mídia Orgânica , Reaja- Rede Ativista de Jornalismo Ambiental. Como a Banco de Alimentos observa esses trabalhos, com demandas históricas, também, em outros lugares do país, e iniciativas como a de Movimentos como o AMA, que desde 1999, desenvolve a campanha, permanente e itinerante: “Desperdício Zero = Lixo Zero = Fome Zero = Saneamento 10”?

Luciana Quintão: Consideramos magníficos trabalhos desses coletivos!!! Percebo que esses movimentos, a sociedade civil, a qual me incluo, faz um excelente trabalho. Esses coletivos como o Movimento AMA, trabalham em conceitos avançados, inteligentes e urgentes sobre o que o mundo estar a nos requerer. Observo que o lema desses trabalhos vai direto ao ponto de um sistema inteligente e básico para gerir recursos com eficiência, proteger o meio ambiente e dar às pessoas o que é de direito das mesmas.

Liliana Peixinho: Tem experiências de práticas lixo zero? Poderia compartilhar informações?

Luciana Quintão: Temos sim! Através da prática de consumo integral dos alimentos, usando as sementes, os talos e as cascas, produz-se lixo zero na cozinha. Fora as embalagens.

*Liliana Peixinho jornalista, especializada em Jornalismo Científico, Meio Ambiente, Sustentabilidade, Cultura. Autora do livro, em pílulas virtuais desde 1999 – “Por um Brasil Limpo”! Defende e pratica o Jornalismo Imersivo; Produtora de diversas séries de reportagens com imersões jornalísticas em comunidades tradicionais como indígenas, quilombolas, agricultores familiares, pescadores, artesãos! Fundadora, produtora, editora de conteúdos: Movimento AMA, Reaja, Mídia Orgânica, RAMA.

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