Ex-diretora do Departamento de Patrimônio Imaterial do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) expõe seu ponto de vista sobre as legislações de patrimônios materiais e imateriais.
Melissa Carlos e Nauan Sacramento
O verbo “preservar” é definido no dicionário como: “Conservar, evitar a destruição de algo, de alguém ou de si mesmo; fazer com que continue vivo, presente”. Hoje em dia, vivemos em um contexto de constantes mudanças, tanto no espaço, quanto nas ideias e percepções. Para que não percamos o passado e nossa história no meio desse turbilhão de novidades, foram criados órgãos e artifícios legais para preservar o que é ameaçado, tanto pelo tempo quanto pela ação humana. A AGN conversou com Márcia Sant’Anna, professora da Faculdade de Arquitetura e ex-diretora do Departamento de Patrimônio Imaterial do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), sobre as questões que permeiam a conservação cultural no Brasil.
A primeira vez que esse assunto foi discutido nacionalmente foi na Constituição Federal de 1988, em seus artigos 215 e 216, que ampliou a noção pública de patrimônio cultural ao reconhecer a existência de bens culturais de natureza material e imaterial. Antes disso, o que se tinha era o Decreto-Lei nº 25/1937, que estabelece o regime de tombamento para proteção do patrimônio. Além disso, o patrimônio imaterial também é protegido por leis como a Lei nº 11.645/2008, que, dentre outras definições, torna obrigatório o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena nas escolas, contribuindo para a valorização e preservação das tradições culturais de grupos formadores da cultura brasileira.
Apesar da primeira legislação nacional de preservação do patrimônio ser de 1938, Márcia ressalta que até hoje existe uma falta de leis efetivas para o patrimônio urbano de maneira específica. Em geral, o patrimônio urbano tem sido protegido pelas mesmas leis de reconhecimento patrimonial citadas anteriormente pela professora, como o decreto lei Nº25. Um agravante para essa falta de proteção circunstancial para patrimônios urbanos é a dimensão complexa que as grandes cidades enfrentam em meio aos desafios ambientais contemporâneos. Márcia argumenta que a proteção patrimonial pode sim ser aliada da causa sustentável, mas que para isso urge a composição de leis que tratem desses espaços efetivamente.
Na entrevista, questionamos Márcia sobre como ela percebe as mudanças das leis de preservação na sociedade e no meio legislativo. Para a professora, até o início dos anos 90 se praticou uma política de preservação de cunho técnico e pouco participativo, e que no meio dos anos 2000, quando essa política se estrutura, começa a se praticar um processo participativo, não só de identificação e reconhecimento do patrimônio, mas também de gestão desse patrimônio após o seu reconhecimento. Marcia acredita que não existe patrimônio sem os atores que os produzem. O patrimônio histórico de um lugar, sejam as tradições, monumentos ou edifícios, ajudam a formar a memória de um povo, quase como um sentimento coletivo, a cultura ajuda a formar o ideal do patrimônio de uma sociedade.
Mas o que determina se uma tradição ou lugar vai ser tombado como patrimônio histórico e cultural? Quais são os processos e questões que envolvem dar esse título? Sant’Anna tem uma visão geral sobre esse feito: “Ela (a Constituição) diz que o patrimônio não é algo pré-existente dado, mas é aquilo que a sociedade considera patrimônio. E cabe ao Estado, com a participação da sociedade, contribuir para a preservação desse patrimônio”, explica. São as pessoas que praticam ou vivem certas tradições que determinam essa preservação, não existem regras ou atributos necessários para algo ser reconhecido como patrimônio, qualquer grupo de pessoas pode solicitar ao Estado o reconhecimento de algo como patrimônio nacional. Essa transformação é super importante. Em determinados momentos, um determinado grupo, pode decidir que algumas daquelas referências culturais, devem ser reconhecidas como patrimônio para além daquele grupo. E é aí nesse momento que o grupo pode propor ao estado o reconhecimento daquele bem cultural como patrimônio da nação.
“É preciso voltar para dentro, aproveitar mais as infraestruturas instaladas, os espaços vazios que estão no interior da cidade, que já tem esgoto, que já tem abastecimento de água, que já tem energia, já tem tudo e estão esvaziados, ao invés de ficar avançando sobre a natureza cada vez mais. Então, preservar o patrimônio e aproveitá-lo dessa forma é uma ação ambiental significativa”.
Outro ponto que aumenta a complexidade dessa questão é o turismo, que é por vezes entendido como tática de preservação. No entanto, Márcia defende que esse é um modelo falido. “O turismo é sazonal, de modo que não há, durante todo o ano, pessoas suficientes para ocupar as localidades de forma eficiente. Outro entrave é que a maior parte dos edifícios voltados ao turismo possui os andares superiores desocupados, de forma que dependem de ajuda estatal para sua conservação. Por conta da insuficiência da “monocultura do turismo”, a professora sugere uma diversificação das táticas de preservação.
Ainda falando sobre as relações socioeconômicas entre preservação de espaços na sociedade, questionamos a professora sua visão sobre como se dá a disputa do mercado imobiliário por terreno de preservação histórica na cidade de Salvador. “Veja só, as áreas de patrimônio ambiental de Salvador que são mais visadas pelo capital imobiliário, não são as áreas exatamente do centro histórico, mas todas aquelas que estão voltadas para o mar. A orla marítima de Salvador é toda tombada. Ela é reconhecida como patrimônio. Mas ela já foi, a gente pode considerar, praticamente destruída pelo capital imobiliário. E, infelizmente, o planejamento da cidade, o plano diretor da maneira como ele foi aprovado, abriu possibilidades imensas para que o capital imobiliário atue na cidade sem nenhuma consideração por essa qualidade ambiental. E é assim que a gente tem edifícios de 40 e tantos andares sendo construídos em qualquer lugar”, afirma.
As polêmicas em torno da votação da nova Lei de Ordenamento do Uso e da Ocupação do Solo (Louos), que ocorreu em 2016, visava estabelecer as normas para altura dos prédios da orla de Salvador. Desde então, o possível sombreamento causado pelas construções é amplamente discutido entre especialistas da área.
Essas questões entre consciência e educação são os principais fatores que carregam o poder de derrubar ou levantar leis como essa. Para Márcia a educação patrimonial deve trazer a ideia de compartilhamento de valores “Precisamos criar canais mais eficientes de diálogo entre Estado e sociedade, entre grupos sociais. Para que esses valores atribuídos ao patrimônio sejam mais disseminados. Outra coisa é a falta de um trabalho mais sistemático junto às escolas. Há muito tempo já se sabe que é fundamental para a própria preservação do patrimônio que desde o primário,, as crianças tenham acesso a essa discussão, sobre o que é patrimônio na sua cidade, o que elas entendem que é patrimônio, o que tem valor e etc.
Nesse ensinamento, o local imaginário popular do que é preservado ainda está muito ligado às práticas sancionadas no início da década. A dita “Arquitetura Vernacular”. Uma vertente arquitetônica que é caracterizada como um tipo de construção que se baseia em técnicas e materiais daquele local, adaptando-se às condições do ambiente e às tradições culturais de uma determinada região. Segundo a professora Márcia boa parte dos patrimônios tombados desde o início aono fim dos anos 30 até os dias atuais se configura como Arquitetura vernacular.
“A arquitetura vernacular se desenvolve dentro do período de Brasil colônia. Então toda essa arquitetura ou quase toda essa arquitetura que se chama colonial, ela é vernácula. O que a gente precisa é dar relevo a isso. E, claro, isso de um lado. De outro lado, a gente ainda tem no Brasil em áreas aqui na Bahia, por exemplo, como a Chapada Diamantina e outras, onde uma arquitetura vernácula contemporânea que é feita ainda até hoje com base em conhecimentos passado de geração para geração, com base no aproveitamento de materiais locais, ela ainda existe e ela é um patrimônio dessas regiões também. Então, o reconhecimento dessa arquitetura vernacular é fundamental para o próprio campo do patrimônio. Não só para reconhecermos que muito daquilo do passado é construção popular, mas também para reconhecermos que essas tradições estão vivas até hoje e que são ainda um patrimônio de muitas regiões do Brasil”. Discute a professora.
A ideia de patrimônio vem mudando e conquistando novos significados nos dias atuais. Esses artefatos que antes se resumiam a prédios, hoje passam a ser também sobre manifestações culturais e sociais. Alguns exemplos são o Samba do Cardosão, recentemente tombado como patrimônio do Rio de Janeiro e o Forró que foi reconhecido como patrimônio cultural e imaterial de Alagoas. Esses atos servem para mostrar que a cultura nacional está viva e pode continuar respirando por muito tempo.