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Atualizado em 10 DE outubro DE 2016 ás 14:00

Salete Maria da Silva

Autora do recente o livro A carta que elas escreveram, baseado em sua tese de doutorado, professora Salete Maria da Silva, pesquisadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM-UFBA), falou com exclusividade à repórter Rebeca Almeida da Agência de Notícias em CT&I – Ciência e Cultura sobre o atual cenário político brasileiro e a participação das mulheres pouco tempo depois dos resultados das eleições municipais de 2016 e no período em que a Constituição Federal de 1988 completa 25 anos. Data considerada como de grande importância e na qual a luta feminina se fez muito presente apesar de pouco reconhecida

POR REBECA ALMEIDA*
rasrebeca@gmail.com

Ciência e Cultura – A senhora poderia fazer uma breve análise das eleições municipais deste ano, tendo como foco a aplicabilidade da Lei 12.034/09 e quais mecanismos estão sendo trabalhados para que a cota seja mais tendência e menos um obrigação partidária e eleitoreira?

Salete Maria – Ainda é muito cedo pra fazer uma análise completa, porque alguns municípios ainda vão para segundo turno. Mas de um modo geral, ela repete uma realidade que já vem acontecendo no Brasil em outra eleições. Na Bahia nós temos três municípios em que somente mulheres concorreram entre si, no entanto quando se analisa o perfil dessas mulheres, percebe-se que elas não têm necessariamente uma trajetória política ou envolvimento com movimentos sociais. Em sua maioria são mulheres que estão ali por delegação, transferência de poder, uma vez que são esposas, filhas ou parentes de lideranças masculinas que foram impedidas inicialmente ou que já tinham concorrido a própria reeleição. Então mais uma vez as mulheres acabam de algum modo sendo convocadas quando os homens não podem. Não necessariamente os partidos reconhecem nelas lideranças ou sujeitos políticos capazes de enfrentar as candidaturas. Eu avalio que nós ainda continuamos com um déficit de gênero, do ponto de vista da democracia. Os últimos dados apontam que as mulheres não passam de 11% das prefeitas eleitas de todo Brasil, algo em torno de 600 mulheres. Já os homens são quase 88% dos eleitos. O quadro é de reforço da dominação masculina no campo da política. É uma manifestação ainda do patriarcado. Eu diria que apesar dos nossos esforços políticos e jurídicos, das conquistas, da Lei de Cotas, os partidos se vêem obrigados a cumprir a lei mas não estão convencidos, em sua maioria, da importância de buscar a igualdade de gênero.

Ciência e Cultura – Acredita que de alguma forma o cenário político nacional influenciou o resultado das eleições municipais?

Salete Maria – Eu avalio que nós estamos sofrendo um retrocesso justamente porque o quadro geral já apontava para isso, com o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. Do ponto de vista de gênero, o modo como os políticos e mesmo as pessoas em geral nas redes sociais, se referiam a presidenta, ao fazer críticas ao governo, se dava de forma bem diferente de quando se critica um político homem. Havia muita misoginia. As pessoas não respeitavam a pessoa dela, sua vida pessoal e em alguns momentos até sua vida afetiva e sexual. Então esse quadro mais geral acabou influenciando nas eleições. Porque se a primeira mulher a chegar na presidência da República sofre um impeachment, isso gera munição para que se interprete, de maneira irresponsável, que as mulheres não são aptas para política. Então isso vai produzindo um efeito cascata, se reproduzindo em outros espaços.

Ciência e Cultura – De que forma essa desigualdade dentro da política poderia ser revertida?

Salete Maria - Primeiro os partidos tem que cumprir a lei integralmente. Isso implica dizer que, além de apenas apresentar as candidatas mulheres nas vésperas da eleição, muitas vezes com candidatas “laranjas”, é preciso que os partidos invistam na capacitação e formação das políticas brasileiras. A política de gênero tem que atravessar, transversalizar toda política partidária. Um partido que cumpre a Lei de Cotas já reconhece a importância das mulheres nos diretórios. Eu penso também que devemos criar novas estratégias. A mais importante delas seria o monitoramento da lei de cotas, para evitar as candidaturas laranjas, a candidatura de mulheres a pretexto de cumprir a cota mas também como um escudo para proteger homens. Precisamos evidenciar também que as mulheres cheguem ao poder mas não são empoderadas, entende? As mulheres não têm autonomia, em muitos casos, para decidir e nos bastidores os homens estão movimentando as teclas desse tabuleiro. Eu percebo que nós precisamos pontuar muitos avanços do ponto de vista legal, do ponto de vista político, mas até hoje nós só tivemos uma experiência sofrível com uma mulher na presidência da República e nem com ela chegamos à cota de 50% de mulheres nos ministérios. E a paridade nem é justa, pois se somos maioria da população, nós teríamos que ter maioria dos ministérios…

“Eu diria que apesar dos nossos esforços políticos e jurídicos, das conquistas, da Lei de Cotas, os partidos se vêem obrigados a cumprir a lei mas não estão convencidos, em sua maioria, da importância de buscar a igualdade de gênero.”

Ciência e Cultura – Pode falar um pouco mais sobre a “formação política das mulheres”?

Salete Maria – É necessário uma formação permanente, um investimento pesado do ponto de vista político, do ponto de vista qualitativo da formação das mulheres. Também, um investimento econômico, porque logo quando elas se colocam como candidatas, os recursos partidários são muito insignificantes. Se você olhar material de campanha de candidatos homens e de candidatas mulheres, de um mesmo partido, inclusive nas esquerdas, você vai perceber uma diferença muito grande. Inclusive tem uma diferença intra genérica, entre as próprias mulheres dentro dos partidos. Por exemplo, determinadas categorias de mulheres, como mulheres lésbicas, negras, trans, velhas, ou seja aquelas que socialmente são mais vulneráveis, quando se candidatam elas também não recebem do partido o mesmo tratamento que as mulheres brancas heterosexuais, que dentro desse contexto, gozam de um certo “privilégio” – privilégio entre aspas porque o patriarcado não dá privilégio para mulheres, mas ele as divide entre si. Então em síntese, a formação política com a perspectiva de gênero precisa dar formação para que se perceba que mulheres e homens têm necessidades e especificidades diferentes. Além disso é preciso incentivar essas mulheres a assumirem postos importantes dentro dos partidos, respeitar a vontade dessas ao quererem ou não se candidatar. Não sei se você lembra, mas em 2014, um dos primeiros slogans era “vamos eleger Dilma com a força de Lula”, então nada mais patriarcal. Então, que as mulheres tenham voz ativa nos partidos, que elas possam falar ao longo dos anos e, independente das eleições, que elas possam aparecer, que os partidos tenham cotas internas pois para respeitar a cota parlamentar é preciso respeitar a interna. É preciso radicalizar a democracia dentro dos partidos, para depois poder lutar pela democracia de uma forma mais geral.

Ciência e Cultura – A senhora acredita que a sanção para o não cumprimento da lei é muito branda?

Salete Maria - Sim, eu acredito que a legislação não prevê um ônus, não prevê uma sanção que, por exemplo, tire do ar o programa do partido, uma multa pecuniária ou que o partido possa perder determinadas regalias do ponto de vista da Justiça Eleitoral. Ela é muito branda porque prevê sanções (o Ministério Público pode chamar, orientar,  sugerir…) mas falta um monitoramento. Os movimentos sociais também precisam monitorar os partidos políticos. O problema é que no Brasil os movimentos sociais são muito atrelados e dependentes dos partidos. Percebe-se, quando se conversa com as mulheres que atuam no mundo da política, que muitas vezes a crítica é feita apenas internamente, para blindar o partido da crítica pública. Por exemplo, elas denunciam que nas últimas eleições os partidos não tem feito convenções como deveria ser, com prévias eleitorais. Os “caciques”, os “donos do partido”, que definem as candidaturas e, em via de regra, coincidentemente ou não, essas candidaturas são masculinas e brancas. As mulheres são chamadas para ficar na retaguarda.

Ciência e Cultura – Como assim na retaguarda?

Salete Maria - Por exemplo, na penúltima eleição para prefeitura de Salvador, duas mulheres importantíssimas, altamente competentes, respeitadas não só em Salvador mas na Bahia inteira, Célia Sacramento e Olívia Santana, ficaram como vices de seus respectivos candidatos, ou seja, ficaram na retaguarda como se elas não tivessem capacidade para estar na cabeça. Existe um chamado teto de cristal, um conceito que diz que as mulheres conseguem se desenvolver até um certo momento e aí essa barreira invisível as impede de ascender. Ou seja, não podem ser além de vices. Quando a gente fala de democracia, a gente fala tanto de uma perspectiva quantitativa quanto qualitativa. E nós, quantitativamente, estamos perdendo esse jogo. Qualitativamente nem se fala.

“Nós temos um déficit não só da participação das mulheres no poder, nós temos um déficit de conhecimento sobre a participação dessas mulheres.”

Ciência e Cultura – De que forma a Universidade pode contribuir ou tem contribuído para a diminuição dessa desigualdade?

Salete Maria - Nós temos um déficit não só da participação das mulheres no poder, nós temos um déficit de conhecimento sobre a participação dessas mulheres. Estou falando poder institucional, que é aquele que determina o destino de todas as pessoas. Precisamos de mais pesquisa para conhecer não só o movimento dessas mulheres, sua atuação dentro dos poderes executivos e judiciário. Também não só delas enquanto grupo, mas também como indivíduo. Michelle Bachelet, que foi presidente do Chile, dizia o seguinte: “Quando uma mulher entra na política ela se transforma. Mas quando várias mulheres entram na política, elas transformam a política”. Nós precisamos de mais pesquisas para compreender como uma mulher consegue entrar na política. Como que ela lida com essa estrutura, quando adquire consciência de gênero, como que se movimenta, se articula. Enfim, como ela ganha esse jogo ou resiste. Podemos fazer um estudo histórico dessas questões, mas também pode-se fazer um estudo relacionado com a cidadania subjetiva, como esse sujeito se percebe como um sujeito de direito, um sujeito político… Precisamos de muitas pesquisas para compreender porque muitas vezes partidos atropelam os interesses dessas mulheres e elas acabam traindo suas bases. Precisamos revelar como é complexa essa relação das mulheres com o poder, porque este ainda é hegemonicamente masculino e elas acabam muitas vezes sendo sugadas nessa estrutura e suas vozes são diluídas, silenciadas, apagadas… Se as pesquisas se propõem analisar criticamente esse movimento poderão nos dar elementos para sabermos como os movimentos sociais podem incidir de forma a pressionar o poder para que ele perca seu aspecto patriarcal. Ultimamente o foco dos estudos tem sido a questão da violência, que é um outro tipo de poder, nas relações interpessoais. É importante também que tenham essas pesquisas.

Ciência e Cultura – Qual é o foco do seu trabalho?

Salete Maria – Eu trabalho com o conceito de violência e política contra as mulheres. Ou seja, aquelas condutas, ações ou omissões que constrangem, desestimulam as mulheres a participarem da política. São situações que, através de discursos misóginos, são consideradas incapazes, impotentes, etc. Ou são encorajadas a se assemelhar aos homens. Muitas mulheres quando se elegem mudam de comportamento e de temperamento para serem notadas. Por exemplo, durante a campanha eleitoral de 2014, quando a candidata Marina chorou a própria candidata Dilma advertiu: “se você quer ser presidente da república você tem que esconder a emoção”. Assim, acaba-se reforçando estereótipos de gênero, como se o lugar do poder não fosse o lugar do sentimento, da emoção, da afetividade e etc.

*Estudante do curso de Comunicação Social – Jornalismo na Faculdade de Comunicação da Ufba e estagiária da Agência de Notícias em CT&I – Ciência e Cultura e da Agência Experimental

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