Resistência de expressão de identidade cultural é alvo de atritos entre praticantes e autoridades que proíbem a pratica
Por Heloísa Helena e Pedro Bahia
O céu se enche de clarões e fumaça, enquanto homens, armados de espadas de pólvora artesanal, se enfrentam em duelos coreografados nas ruas da cidade. É a Guerra de Espadas, símbolo centenário das festas juninas em Cruz das Almas, cidade do Recôncavo Baiano. Nos últimos anos, o que antes era expressão de identidade cultural passou a ser enquadrado como crime.
Desde 2011, a prática está na mira do Ministério Público da Bahia (MP-BA), que a associa a riscos à segurança pública. Em meio à tensão entre preservação e repressão, espadeiros como Cleo Rocha, presidente da Associação de Incentivo à Cultura Junina Cruzalmense, lutam para garantir a continuidade dessa manifestação única.
“Quando a gente fala em Cruz das Almas, logo as pessoas falam de Espadas”
A Guerra de Espadas é mais do que um espetáculo, é parte da história cruzalmense. Como resume Cleo Rocha, “quando a gente fala em Cruz das Almas, logo as pessoas falam de Espadas. Não falam nem de São João, propriamente dito, falam da Espada, o show que a gente dá aqui em Cruz das Almas é o show das Espadas”.
Com raízes que remontam a mais de um século, a tradição reúne elementos de arte, técnica e fé. “Ela significa tudo. Ela significa socialização, confraternização, amizade, festa, alegria, comemoração, religião, fé, química, física, matemática, é arte porque é um trabalho artesanal, enfim, é tudo. É tudo que o ser humano precisa para ser feliz”, afirma o espadeiro.
Em 2011, o MP-BA emitiu parecer recomendando a proibição da prática, alegando riscos à população. A justificativa se baseou em acidentes, queimaduras e relatos de violência vinculados à queima irregular de espadas, além da ausência de fiscalização sanitária e de controle na fabricação dos artefatos. Na época, o órgão destacou que “não se trata de proibir a cultura popular, mas de evitar danos irreversíveis à vida e à integridade física das pessoas envolvidas direta ou indiretamente na prática” (MP-BA, 2011).
No entanto, para os praticantes, o ato de espadar vai além da pólvora: é a própria identidade de Cruz das Almas em jogo. A presidente da Associação de Incentivo à Cultura Junina Cruzalmense, Cleo Rocha, afirma que a tentativa de proibição foi um gesto de desrespeito à memória coletiva do município. “Foi uma tentativa, tentaram, mas o que o povo cria só o povo destrói. Tá mais claro que a tradição não vai acabar, ela só cresce”, diz.
A associação liderada por Cleo Rocha nasceu como contraponto à repressão judicial. Um de seus objetivos centrais é regularizar a prática por meio de iniciativas como o Projeto Salvaguarda, que busca estruturar a produção de espadas dentro de normas técnicas e segurança. Entre as ações propostas, está a construção de paióis e fábricas padronizadas para a fabricação legal dos artefatos, similar ao modelo já existente no polo mineiro de fogos de artifício, em Santo Antônio do Monte (MG).
“A espada é fabricada dentro dos padrões técnicos. Não é caro, porque a espada se paga. Com a regulamentação, a própria atividade passa a se sustentar economicamente”, explica Cleo. Segundo ele, o custo de produção gira em torno de R$150, e o produto pode ser vendido por até R$400 a dúzia, gerando renda significativa para os artesãos locais.
A tentativa de criminalização da Guerra de Espadas em Cruz das Almas também se relaciona com discursos contemporâneos sobre segurança pública e modernização urbana. Para alguns moradores e autoridades, a prática representa risco e tumulto em uma cidade que busca se tornar cada vez mais atrativa ao turismo organizado. Para outros, é o próprio turismo cultural que está sendo negligenciado.
“A gente fala de um show único, que só acontece aqui. Enquanto outras cidades fazem shows de palco com artistas famosos, Cruz das Almas oferece um espetáculo ancestral, feito pelo próprio povo”, argumenta Cleo Rocha.
A Guerra de Espadas enfrenta pressões, como ações judiciais, e o próprio turismo. Muitos jovens, pressionados pela criminalização, têm deixado de praticar a tradição. “Para acabar com essa tradição, requer um esforço muito grande do Estado. Mandaria uma força-tarefa gigantesca por muito tempo, que o custo seria tão alto que não valeria a pena. É mais barato regulamentar”, resume Cleo Rocha.
Mesmo assim, o sentimento de pertencimento resiste. Em cada espada acesa, há não só pólvora e luz, mas também memória, fé e a tentativa de manter viva uma tradição ameaçada.