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Atualizado em 7 DE agosto DE 2025 ás 14:53

Preservação cultural no Quilombo Boqueirão: Identidade quilombola como forma de resistência e luta

No quilombo São Francisco do Paraguaçu/Boqueirão, a luta pela preservação da identidade e cultura quilombola enfrenta desafios diante de tensões internas e influências externas

Por Merlia e Sophia de Holanda

Em meio às paisagens rurais e até nas periferias urbanas, sobrevivem comunidades que carregam em sua história marcas profundas de resistência, identidade e ancestralidade. Dentre essas comunidades estão os quilombos, formados majoritariamente por descendentes de pessoas escravizadas que se reuniram em grupos autônomos para fugir de suas condições escravistas. Mais do que um espaço físico, são símbolos de luta, coletividade e preservação cultural. O quilombo São Francisco do Paraguaçu/Boqueirão segue como testemunha viva de uma história que o Brasil muitas vezes tentou apagar. Hoje, entre desafios e conquistas, seus moradores lutam pela manutenção de tradições e reivindicam seus direitos.

Preservar os fazeres culturais da comunidade quilombola vai muito além do resgate histórico, é um ato de fortalecimento da identidade de um povo feito de resistência. Os estudantes Iuri Castro e Darley Silvano, naturais do quilombo Boqueirão, compartilham algumas de suas tradições ressaltando a importância do convívio harmônico entre o povo e a natureza.


Darley Silvano e Iuri Castro | Foto por: Larissa Lima

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Além da relação com o meio-ambiente, Iuri remonta a importância de conviver e fazer parte da cultura pertencente ao quilombo. “Fora também as questões culturais como capoeira, maculelê, acho que tudo isso traz esse pertencimento e eu vivi tudo isso na minha infância, sabe? Essa é a minha história”. O samba de roda, presente em vários festejos quilombolas é uma das tradições mais fortes da comunidade e representa o sincretismo religioso entre o Candomblé e o Catolicismo “Eu nasci dentro da comunidade e eu nasci dentro da cultura, e o que me move desde pequeno é realmente o samba de roda que sempre foi tradição, tudo tem samba”, comenta Darley.

A comunidade quilombola do Boqueirão é tradicionalmente pesqueira, se dividindo entre duas identidades: os quilombolas e os pescadores. A atividade de pesca de marisco é uma das bases da economia local. Diante de ataques, tanto políticos quanto de moradores locais, a organização e o fortalecimento coletivo tornam-se imprescindíveis para a sobrevivência dessas comunidades. No caso do Boqueirão, um passo importante foi conquistado em 2005: o reconhecimento oficial do território como quilombola por parte do Estado.

Esse reconhecimento como território remanescente de quilombo foi fruto de uma luta que visava, em primeiro lugar, o acesso a políticas públicas e projetos do Estado. Trata-se de um processo moroso e lento, mas contínuo, sustentado pelo reconhecimento da identidade quilombola daquele território. Darley, ao ser questionado sobre esse processo, comenta da resistência de parte da população em se reconhecer como quilombola. “Depois do reconhecimento teve uma divisão da cidade, na verdade, da comunidade. É que algumas pessoas começaram a colar em suas portas, ‘não somos quilombolas, não.’ Até hoje algumas pessoas ainda têm”. A organização da estrutura política sofre diretamente por posturas como essas, visto que, a ameaça não vem somente de fora do território, mas também dentro dele. É sobre entender que negar a própria história fertiliza um espaço para que a reparação do passado não ocorra.

O jornalismo e a pesquisa acadêmica têm um grande peso dentro dessa problemática. A vinculação de notícias afeta diretamente a representação da comunidade, tanto externamente quanto internamente. Assim, como a conduta de intelectuais depois que a pesquisa é finalizada.

Izabelli Santos, coordenadora da Associação dos Remanescentes de quilombo São Francisco do Paraguaçu, aponta o trabalho feito pela mídia de massa na luta da comunidade como um desserviço. Além de desanimar as pessoas que participavam ativamente da luta para o acesso a políticas públicas, para a coordenadora eles enfraquecem o processo de identificação da própria comunidade: “A Rede Globo vai fazer uma reportagem em 2007 falando que nosso processo de titulação era fraudulento porque aqui era uma comunidade pesqueira e não uma comunidade quilombola. Aí a gente vai ter a Globo falando isso e a gente vai ter o movimento negro e o movimento social tentando dizer: ’Não, vocês são quilombolas’. Então, pense qual a influência maior para as pessoas acreditarem e ter esse sentimento de pertença? A mídia já consolidada, né?” declara.

Impacto de agentes externos e desafios institucionais na comunidade do Quilombo Boqueirão


A falta de conhecimento se alastra para outro extremo, a apropriação. Pesquisadores que se apresentam como aliados à causa quilombola, ao realizarem seus estudos e concluírem, não disponibilizaram o trabalho para a comunidade. Iuri demonstra a insatisfação daqueles que auxiliam nessas pesquisas após verem seus resultados. “Então o que vem acontecendo é que as pessoas vão para lá, estudam, se apropriam do conhecimento, dos saberes, da vivência, e não dão um retorno. Então o que a gente pede é que haja uma resposta depois dessa pesquisa que acontece lá, sabe? Porque meio que fica só uma apropriação do conhecimento”, afirma.

Ao receber acadêmicos dentro do quilombo, o acesso à pesquisa se torna essencial para que o pacto entre comunidade e quilombo seja justo. No entanto, Darley dá continuidade a fala de Iuri, explicando que além da apropriação, ameaças à cultura e a vida nascem de acordos quebrados por parte dos pesquisadores.“O ápice realmente agora foi o Carnaval, que é tradição da virada da sexta para o sábado de Carnaval, tem um arrastão do Lux de madrugada. E ela [a pesquisadora] queria fazer uma movimentação para acabar com aquele tempo de felicidade das pessoas que esperam o ano todo por esse momento. (…) Fora os outros fatores. As pessoas sobrevivem do marisco lá dentro da comunidade, do mangue. Ela [a pesquisadora] estava liberando cobras dentro do manguezal”, conta. As ameaças internas à cultura ancestral tem se intensificado, comprometendo práticas essenciais para a manutenção da identidade coletiva da comunidade.

O avanço e consolidação das igrejas em áreas quilombolas foi apontado pelos moradores como um dos motivos desse  enfraquecimento das expressões tradicionais da cultura afro-brasileira, como rituais e celebrações. “(…) a gente tem oito igrejas adentrando o território e sendo criadas, tem uma mudança na preservação dos patrimônios culturais, porque ‘Eu até sou quilombola, mas eu não jogo capoeira. Eu até sou quilombola, mas eu não dou mais caruru. Eu até sou quilombola, mas não participo mais de grupo de samba, porque a Universal não vai permitir, porque a Batista também não.’ Entendeu?” comenta Izabelli.

Darley aponta que essa transformação cultural, ainda que não apague de imediato os laços identitários, gera tensões internas e fragmenta o senso de pertencimento quilombola. “Eu acho que essas narrativas externas, elas não chegam a tirar a gente do controle, mas elas conseguem gerar o conflito, a separação, porque temos, por exemplo, várias associações que são formadas com ideias de fora.” Assim, observa-se que a influência de discursos e estruturas externas à comunidade pode interferir diretamente nos modos de organização social e cultural.


Larissa Lima, Merlia, Darley Silvano e Iuri Castro | Foto por: Sophia de Holanda

O cenário atual, apesar de suas dificuldades, não impede jovens do Quilombo Boqueirão de buscarem um futuro diferente. A presença e ocupação dessa nova geração na universidade pública possibilita uma reparação histórica necessária, que é o afastamento dos quilombolas ao acesso à educação. Porém, os mais velhos, que carregam o saber ancestral, em sua maioria na oralidade, encontram dificuldade em se organizar. “Ainda são comunidades com um nível de escolaridade muito baixo. São associações que são compostas em sua maioria por membros que nem acessaram a educação ou se acessaram mal sabem fazer o nome”, diz Izabelli sobre a movimentação de conquistas que necessitam da escrita como instrumento principal, como por exemplo, a construção de projetos para editais.

Essa limitação tem impacto direto na organização política e na liderança da comunidade. Izabelli não aponta uma única barreira para a escolarização mas também enxerga um problema estrutural: depender de terceiros. “Então, como esses grupos que estão de frente, fortalecendo a frente política, sabem falar as narrativas, mas como que eles vão dominar um outro processo que é a escrita, escrever para editais ou entender um”, completa ela.

O sistema colabora para os ataques e a invasão do modo de viver quilombola. Assim, para se aliar a essa luta, é necessário fortalecer a causa dessa comunidade e abrir espaço para que eles possam falar, mostrar e construir o futuro do quilombo.

A sociedade pode ajudar a garantir a presença ativa desses povos em espaços acadêmicos, científicos e de decisão, valorizar vozes, experiências e abrir caminho para uma transformação que respeita, inclui e repara séculos de invisibilidade. Esse processo começa com a escuta ativa. “É justamente a questão da escuta. Chegar lá e perguntar: Qual a necessidade? Qual a sua vivência? Qual a forma de articular para poder resolver um problema? Então, quando você monta a estrutura de um projeto, pensando no melhor da comunidade, você tem que ver todas as formas que pode realmente ajudar aquele lugar”, explica Darley.

*Revisado por Eric Tavares e Larissa Lima

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