“A Ballroom é para todo mundo, mas nem todo mundo é Ballroom.”
Merlia
Nos últimos anos, a ballroom tem ganhado cada vez mais visibilidade na mídia, com destaque em reportagens, documentários, videoclipes, reality shows e editoriais de moda. Muitas dessas abordagens acabam reforçando apenas o lado estético e performático do movimento — focando nos brilhos, nas poses e nas batalhas, mas deixando de lado o profundo impacto social que essa cultura tem para a juventude LGBTQIA+, especialmente em territórios periféricos.
Os integrantes, ao se estruturarem em uma base familiar, que se denominam por “casas”, garantem que laços afetivos sejam um fator que repassa saberes ancestrais e práticas culturais ligadas à negritude e à vivência queer. Para entender como a multi-preservação cultural ocorre na prática, conversamos com uma das houses ascendentes da cena soteropolitana da Ballroom, a Kiki House of Bushidō.
Prince Eros Bushidō, Princess Júpiter Bushidō, Plazma Bushidō e Makori Bushidō | Foto por: Lucas Soares
Usando a oralidade eles aprendem no convívio diário, compartilhando experiências e celebrando indivíduos, como parte do processo de inserção na cultura. A dimensão cultural da Ballroom é extensa, historicamente, e também socialmente. Makori, integrante da casa Bushidō, fala sobre o processo de conscientização da origem e importância política da Ballroom.
“Às vezes nem a gente que é Ballroom, até pessoas 007 que chegaram na cena há poucos meses, vão entender exatamente qual cultura eles estão fazendo parte, porque são muitos tópicos, são muitos anos, são muitas eras. Então, é um processo de aprendizado que muitas pessoas vão ter preguiça de entender e que vão abandonar, muitas pessoas que vão repudiar e que não vão gostar.”
Makori Bushidō, Plazma Bushidō, Princess Júpiter Bushidō, Prince Eros Bushidō | Foto por: Lucas Soares
Apesar da polaridade do entendimento sobre o movimento, é certo dizer que existe uma manutenção central quando o assunto é preservação cultural feito pelos integrantes das casas. Júpiter, Princess da cena baiana da Brazilian Kiki House of Bushidō, reforça a importância do estudo da Ballroom, principalmente daqueles que já adentraram na cena.
“Eu e Pavuna, que é a mother da house, a gente tem uma brincadeira assim: ‘Só quer dar Dip e não quer abrir um livro?’ Tipo, não é só a dança pela dança, é você estudar, a Ballroom tem muito disso. Você tem que estudar, você tem que procurar ir atrás”
O estudo de um movimento artístico é um conjunto de entender o produto, onde ele é produzido e onde ele está inserido. Assim, a interseccionalidade, e o atravessamento dela na cena da Ballroom, é de indubitável importância para a construção dessa comunidade. A dança, os gestos e os códigos carregam heranças afro-brasileiras, mas não só isso, Júpiter aborda como a negritude se torna um fator chave dentro da Ballroom, onde se cria uma rede de apoio a jovens negros.
“Nossa house é toda preta, sabe? Aqui em Salvador, todas as pessoas da house são negras e a house é de maioria negra. Então, isso para a gente é muito importante, esse senso de comunidade que vai para além da do gênero, da sexualidade, é também a raça. Porque a ballroom para mim é para além da performance, para além do espaço artístico, é onde também eu construo minha comunidade”
Essa comunidade faz com que a vulnerabilidade vire potência e o fazer artístico uma ferramenta de resistência cotidiana. O ato de se espelhar no outro e ter segurança em pessoas que dividem o mesmo contexto social faz com que percepções se construam, e que haja um empoderamento de corpos. Participantes do movimento da Ballroom, como Plazma, teve sua relação de auto imagem transformada ao participar da cena.
“A ballroom me ajudou muito nisso, em questões étnico-raciais, e saber que meu corpo não é bem-vindo em todos os lugares. Que eu tenho que andar com medo na rua às vezes, que eu posso não ser bem-vindo em certos lugares, mas ao mesmo tempo trouxe aquele lugar de, porra, eu tenho que bater no peito e falar quem eu sou, tá ligado? E eu tenho que ter orgulho daquilo, porque eu não vou ficar me escondendo para sempre. Então, é muito nesse fator de cura”
Plazma Bushidō | Foto por: Lucas Soares
A Ballroom passa por um problema que a cultura brasileira sofre em todas as suas capilaridades, que é a arrecadação de fomento. Eros, Prince da Kiki House of Bushidō, estudante de Produção Cultural na UFBA, revela que a Ballroom por ser um movimento artístico da periferia e queer, necessita da utilização de políticas públicas para suporte, seja ele financeiro, de equipamentos ou locais públicos. No entanto, apesar de existirem editais e leis que abrangem a Ballroom, ainda é muito pouco para o potencial da cena.
“Eu acho que do ano passado para cá a gente tem conseguido acessar alguns lugares para realizar eventos. Alguns lugares estão vinculados ao poder público, mas a gente ainda não tem um apoio de forma sistematizada. No geral, a Ballroom é um movimento que tem uma relação muito forte com a UFBA. A primeira ball aconteceu aqui, a cena, os primeiros treinos aconteceram aqui e até hoje existe essa relação muito forte, principalmente porque tem muitas pessoas que são da universidade que estão na cena. Mas é uma relação de ocupação.”
Para além do financeiro, Júpiter afirma que é sobre a valorização do trabalho feito dentro desse movimento. Indo além, é a possibilidade de expandir e fortalecer meios de fazer projetos, feitos pela Ballroom para a Ballroom.
“Além de nós termos outras pessoas olhando para a Ballroom, falando sobre a Ballroom, ou se utilizando da simbologia e de toda problemática que isso carrega, mas que possa ser a gente falando sobre a gente, carregando as nossas questões, as nossas demandas e quem nós somos.”