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Atualizado em 2 DE outubro DE 2011 ás 13:52

Os tecnocratas não comem acarajé

Detentores do saber técnico embasam decisões políticas sob a égide do desenvolvimento. Com eles, questões sociais e culturais são postas em segundo plano. Foi assim com a demolição da Fonte Nova

Wagner Ferreira*
wagner.ferreira@ufba.br

Tecnocratas são detentores do saber técnico – especialistas: engenheiros, médicos, mecânicos, ou qualquer outro profissional que possua saber prático específico em determinada área. Em situações de crise, a figura do tecnocrata nos é apresentada para dar pareceres sobre catástrofes naturais, previsão de cura de novas doenças, e até se o nosso dia será de sol ou nublado. Eles são também as “vozes autorizadas” do poder político em momentos de intervenções sensíveis à vida social.

A primeira manifestação da tecnocracia é atribuída ao sociólogo francês Claude-Henri de Rouvroy, conde de Saint-Simon (1760-1825). A temática é bastante explorada no livro A construção das Ciências: as lógicas das invenções científicas, do físico e filósofo, Gérard Fourez.

Um exemplo recente e local foi a decisão tomada por um corpo técnico (engenheiros, arquitetos, agrimensores) em demolir o estádio da Fonte Nova, em Salvador. A medida foi justificada para seguir um padrão de segurança imposto pela Fifa aos estádios brasileiros, que deverão estar aptos a receber os jogos da Copa do Mundo de Futebol em 2014.

Para uma praça esportiva reconhecida nacionalmente por lotar estádios, mesmo com times de baixo rendimento técnico, é um desrespeito não ter feito uma consulta pública e apenas delegar a decisão para meia dúzia de técnicos

O Estádio Estadual Octávio Mangabeira, popularmente conhecido como Fonte Nova, foi inaugurado em 28 de janeiro de 1951 (anel inferior e reinaugurado, com a ampliação da capacidade, por meio da construção do anel superior, em 1974). A Fonte Nova foi a obra mais importante e representativa do arquiteto e urbanista baiano Diógenes Rebouças, falecido em 1994. A “Fonte do Futebol, assim carinhosamente chamada por radialistas baianos, já recebeu um público de mais de 110 mil pessoas, durante a semifinal do Campeonato Brasileiro de 1988 entre Bahia e Fluminense, mas de acordo o novo projeto ditado pelos tecnocratas do governo estadual, a nova “Arena Fonte Nova” – nome do novo estádio – terá capacidade para apenas 50.433 lugares, de acordo com a Secretaria Estadual para Assuntos da Copa (Secopa). Desse número, ainda serão descontados o setor VIP (880 assentos); camarotes (1.127 assentos) e as cadeiras de imprensa, que ocuparão 3950 lugares. Dessa forma, a capacidade real para o público comum é de 44.476 lugares, destes, 3.157 serão assentos de hospitalidade.

Fonte Nova - já com o anel superior - recebe grande público em tarde de clássico BA-VI (1974)

Para uma praça esportiva reconhecida nacionalmente por lotar estádios, mesmo com times de baixo rendimento técnico, é um desrespeito não ter feito uma consulta pública, e apenas delegar a decisão para meia dúzia de técnicos, que certamente não consideraram em seus cálculos, impactos sociais e culturais relacionados com os costumes dos que frequentam o estádio, bem como o valor simbólico de uma construção de mais de 60 anos reduzida a pó em 10 segundos.

Tudo isso está embasado pela velha, mas pertinente justificativa da geração de emprego e renda, apesar de estar clara a praticidade e o lucro agregado que o empreendimento irá gerar: A Nova Arena terá acesso para jogadores, estacionamento, estacionamento VIP, vestiários, zona mista. Sua estrutura abrigará também o Museu do Futebol, Fun Shop, Business Lounge, sala de imprensa, 31 quiosques, 11 elevadores e 58 sanitários, (site da Secopa).

A agenda setting – que deveria induzir a opinião pública a se manifestar a respeito da decisão – não foi explorada pelos dois maiores jornais do estado

E o futebol nisso tudo? É só mais um serviço para eles. O esporte das massas teve a grandiosidade do seu espetáculo reduzido em detrimento de outras atividades comerciais que o complexo esportivo abrigará. É mais prático e “barato” por tudo abaixo e montar uma estrutura premoldada. Não houve discussão maciça junto à população baiana sobre o destino do velho estádio.

A agenda setting – que deveria induzir a opinião pública a se manifestar a respeito da decisão – não foi explorada pelos dois maiores jornais do estado. Não houve interesse dos que fazem a imprensa no estado (empresários e, sobretudo, jornalistas de veículos) em ir de encontro a tamanho investimento, afinal é perspectiva de emprego e renda para “todos”. E os frutos já começam a aparecer: bairros no entorno da obra, como Nazaré, Brotas, e Jardim Baiano já vêm sendo os mais beneficiados em Salvador. Apartamentos que valiam R$ 140 mil, já estão sendo vendidos por cerca de R$ 200 mil, de acordo com o Conselho Regional de Corretores Imobiliários da Bahia (Creci-BA). Isto interessa a uma cadeia de negócios, quem vende e quem compra o imóvel, e o responsável pela venda no anúncio; jornais e mídias eletrônicas (Rádio, TV e Internet), só não interessa ao torcedor que tem o hábito de ir ao estádio.

Apenas um ano mais velho que a nossa Fonte Nova, o Maracanã também foi palco de desastres ao longo da sua história, em 1992, durante um jogo preliminar à partida entre Flamengo e Botafogo. Uma grade da arquibancada do Maracanã cedeu, provocando a queda de centenas de pessoas para o anel inferior e a morte de três torcedores

Para se ter uma idéia do potencial de presença do torcedor baiano, a estréia do filme, “Bahêa Minha Vida”, que conta a história de 80 anos do Esporte Clube Bahia, estreou na última sexta-feira (30) em Salvador e já superou nos cinemas da cidade um dos campeões de bilheteria em todo o mundo: a saga Harry Potter.

E se compararmos com outros estádios do Brasil? O Maracanã, por exemplo, foi palco da final da única Copa realizada no país em 1950 – na ocasião, a Seleção Brasileira perdeu o título Mundial para o Uruguai por 1 x 0.

O estádio do Rio de Janeiro é um símbolo do esporte no planeta – apenas um ano mais velho que a nossa Fonte Nova – e também foi palco de desastres ao longo da sua história, como o que aconteceu em 1992, durante um jogo preliminar à partida entre Flamengo e Botafogo. Uma grade da arquibancada do Maracanã cedeu, provocando a queda de centenas de pessoas para o anel inferior e a morte de três torcedores.

A estrutura do “Maraca” é mais antiga que a da Fonte, mas quem ousa cogitar a sua demolição?

Já na Fonte Nova, o que faltava para sentenciar a sua demolição, foi o fato acontecido no dia 25 de novembro de 2007, durante o jogo válido pela Série C do Campeonato Brasileiro de 2007, entre Bahia e Vila Nova – parte da arquibancada do anel superior do estádio cedeu e matou sete pessoas.

A estrutura do “Maraca” é mais antiga que a da Fonte, mas quem ousa cogitar a sua demolição? É obvio que o valor simbólico do monumento, considerando a praça esportiva onde está situado e todo um trabalho de valoração por parte das redes de TV ali sediadas douram o gigante que já abrigou cerca de 200 mil almas em 1950, mesmo ano da sua inauguração.

O maior questionamento deste artigo não é só porque os fatos aconteceram, mas de que forma aconteceram, com a conivência da opinião pública e a corroboração da mídia paralítica e ainda provinciana do nosso estado. A imprensa baiana só precisou da possibilidade da demolição para exibir em manchete a ilustração da Nova Arena, sem promover um debate, ouvir engenheiros, arquitetos, urbanistas, agremiações esportivas contrárias à decisão, ou entidades que defendem a memória cultural e do esporte baiano.

Bem ou mal do nosso século, os tecnocratas ditam as regras nas nações por causa deles batizadas de tecnocracias. Não foi diferente com a Fonte Nova e vem sendo na discussão da tão aguardada ponte Salvador – Itaparica.

Eles detêm o saber absoluto, contam com o lema, “tecnologia para melhor qualidade de vida”, e têm na imprensa a certeza de indução da opinião pública para convir com os interesses do capitalismo selvagem. Esta realidade nos deixa com poucas opções de questionamento e nos encaminha para seus pareceres e sentenças arbitrárias. Isso se não nos prepararmos para debater uma política de governo (Federal, Estadual, Municipal) que está embasada, em sua maioria, em opiniões técnicas.

*Jornalista pós-graduando em Jornalismo Científico e Tecnológico pela Ufba

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Um comentário a Os tecnocratas não comem acarajé

  1. Ana Rita Tavares disse:

    As ideias expostas nesse bem elaborado artigo demonstram que as conveniências econômico-financeiras dos mercados de diversos segmentos são autoritárias passando por cima de valores culturais como um rolo compressor. E mais: que a população não-esclarecida vive alheia e à margem de qualquer possibilidade de opinar e decidir.

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