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Atualizado em 27 DE maio DE 2020 ás 12:01

Brasil infantil! Marcha soldado, cabeça de papel…

Novos versos, velhas histórias em um país que mergulha dos pés à cabeça na pandemia. Dia após dias, vemos as estatísticas piorarem, enquanto medidas de combate e prevenção se mostram incertas, como se fosse possível titubear quando se trata de salvar vidas

POR JOANA BRANDÃO*
joanabrandao@hotmail.com

Barulho de criança parece até um calmante em meio ao barulho das notícias na cabeça. Uma canção ecoa dia a fora: “Marcha soldado, cabeça de papel…”. A marchinha tem sido a predileta nos últimos dias aqui em casa. Ao fim, no ânimo de torcida de Copa do Mundo, um verso inventado: Brasil infantil! Brasil infantil!

Vocábulo novo: Brasil. O infantil vem com um tom de carinho e diversão. No mundo paralelo da infância, o Brasil é ainda algo poético. Eu cá, com o lado direito e esquerdo do cérebro nas notícias, não entendo mais o que é Brasil nem como nutrir carinho por essa nação. O infantil parece uma ironia cruel, com todo sentido de imaturidade e irresponsabilidade que a palavra tem quando aplicada a contextos adultos.

Eu não conheço a história da marchinha, nem lembro de a ter ensinado para minha filha. Fico pensando quais caminhos levaram uma canção de sentido militar a ser música infantil e como cada verso desta canção compõe a narrativa trágica de nossa situação atual enquanto nação, enquanto povo.

Marcha soldado, cabeça de papel…

No Brasil, hoje, todos somos cabeça de papel. Nossa cidadania e nossa dignidade valem muito pouco para um governo que, diante da pior pandemia no último século, não segue nenhuma das recomendações da Organização Mundial de Saúde: não faz teste em massa nem incentiva o isolamento social.

Estamos todos expostos não apenas ao vírus, mas a um Estado que não preza por nossas vidas. Somos parte de um experimento, de uma tecnologia social do “e daí?”. E daí se estão morrendo milhares? E daí se poderíamos prevenir? Enquanto o governo nega a importância das ciências sociais e humanas em seus planos de financiamento da ciência, exerce experimento social genocida sobre a população.

Quem não marchar direito, vai preso no quartel…

O quartel sempre esteve ali na esquina, de portas abertas. A Comissão da Verdade para apurar os crimes da ditadura militar foi criada apenas em 2011, 26 anos depois do fim da ditadura. Não muito depois, em 2016, em pleno Congresso Nacional, foi feita impunemente uma ode a um torturador militar.

É, em tão pouco tempo, reviramos os túmulos da história: 35 anos após o fim de uma ditadura de 21 anos, temos o governo mais militar que o primeiro governo da própria ditadura. Militares estão em ministérios, secretarias, gabinetes, no Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBIO), na Fundação Nacional do Índio (Funai) e no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

Imagem: Giovanna Hemerly

Mesmo com tanto verde e amarelo por aí, é difícil marchar direito e ter orgulho de um país que faz tão pouco contra o racismo estrutural que pratica, que nega a necessidade de direitos humanos quando nunca os teve de verdade, que acha que projeto social para reduzir desigualdade é comunismo, que idolatra países do norte global mas recusa implementar as mesmas medidas que estes países aplicam para garantir direitos básicos aos seus cidadãos. O brasileiro acha que, para se tornar um país de primeiro o mundo, basta ter um governo dizendo que empregada doméstica não pode ir a Miami.

Recorde de mais de 1000 mortos por dia. Mortes evitáveis, ressaltemos. China preveniu, Nova Zelândia, Alemanha… O que esses países têm em comum? Um governo que prezou e preza pela vida de seu povo; um governo que, desde o princípio, levou a sério os alertas científicos sobre a gravidade da doença e empreendeu as medidas comprovadamente eficazes de isolamento e testagem em massa. Por aqui, acredita-se na força, no grito, no cala a boca, em milícias, em armas no campo, em fogo na floresta, em veneno na terra e na mesa, mas não acreditamos na ciência, nem damos sequer um centavo pela nossa riqueza humana e cultural.

O quartel pegou fogo…

No Rio de Janeiro, a fila de espera por leitos é de mais de 1000 pessoas. Muitos estados do Brasil estão com lotação de leitos acima de 70%, Ceará e Pernambuco já estão com lotação praticamente máxima (98%), ou seja, sistema de saúde em colapso. O país, que no começo de abril era o 13º, o primeiro na lista de países com mais mortes por COVID-19 no mundo, saltou para o sexto lugar no começo de maio, ultrapassando a faixa das 20 mil mortes e já é o segundo país com mais número de casos.

A diferença é que, segundo dados do site Worldmeter, testamos menos do que os países que estão na nossa frente neste pódio infeliz (Estados Unidos, Itália, Espanha, França, Reino Unidos). A testagem, diga-se de passagem, é a principal medida recomendada pela Organização Mundial de Saúde para pautar governos em ações de prevenção e combate à doença e tem relação direta com a redução de mortes e número de casos da doença.
Em resumo, estamos em uma guerra sem general, sem munição e sem combatentes. O general seria uma governança eficaz. Munição: testes e leitos necessários para atender a demanda. E combatentes os profissionais de saúde. Mas o Brasil já tem aproximadamente 15 mil enfermeiros afastados por COVID-19 e é o país em que mais morrem profissionais de enfermagem na linha de frente do combate à COVID-19, segundo dados do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen).

Imagem: Giovanna Hemerly

Acode a Bandeira Nacional…

Nossa pátria caminha para ser o epicentro da doença no mundo, e já o é na América Latina. Os Estados Unidos já estão a pagar caro pelo custo de ter um presidente que recomenda aos seus cidadãos injetar desinfetante contra a doença. Ao que tudo indica, a reação dos países a esta pandemia aponta para uma nova divisão de poderes na geopolítica global.

Um país que desacredita a ciência, que transforma política internacional em bate-boca de botequim – que o diga os comentários xenófobos publicados pelo filho do presidente e pelo Ministro da Educação, respondidos com seriedade pela diplomacia chinesa no Brasil, não é respeitado. Nosso soft power não vai ser garantido pelo futebol e Paulo Coelho – duas das coisas mais mencionadas quando se diz que é brasileiro mundo a fora. É preciso mais do que isso para ter algum prestígio político e econômico globalmente.

A espera do sinal de São Francisco!

É o que nos resta, uma vez que – para nosso azar – o bom senso, a razoabilidade e elegância estão todos de quarentena no Brasil. Nossa esperança, machucada, segue sua dança equilibrista. Em última instância, persiste a fé na antítese e na história. Ah, obviamente, como nordestino que somos, também em São Francisco que, no sincretismo com a religião afrobrasileira, é uma expressão de Xangô, orixá da Justiça.

*Joana Brandão é jornalista, cineasta e educadora. Sempre sonhou em vivenciar um momento histórico importante para humanidade. Só não pensou que seria agora e trancada na própria casa. Escreve a coluna “Crônicas do fim do mundo” para a Ciência e Cultura sobre implicações socioculturais da pandemia global pelo Covid-19.

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