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Atualizado em 17 DE junho DE 2025 ás 12:58

A atuação da tecnologia no fortalecimento das culturas indígenas

Tecnologia se torna aliada de comunidades indígenas na luta contra a opressão e epistemicídio


Eric Vinicius e Pedro Bahia

Antes do Brasil ser Brasil, estima-se que eram faladas cerca de 1.000 línguas indígenas. Hoje, são faladas em torno de 160, e praticamente todas estão em risco de extinção, é o que relata Ivana Pereira Ivo, doutora em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Segundo Ivana, esse cenário é causado pela interrupção da transmissão linguística entre gerações, já que a maioria das crianças indígenas atualmente é alfabetizada com materiais didáticos em língua portuguesa, fazendo com que as gerações mais novas deixem de falar sua própria língua. Ivana complementa que “Algumas dessas línguas não estão descritas, não estão registradas”, e alerta que, de acordo com a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), esse é um critério para identificar línguas em risco de extinção.

Esse grave risco de extinção é resultado de uma política de exclusão é desmantelamento dos seus falantes que remonta desde o período colonial. A utilização das línguas indígenas por seus falantes chegou a ser proíbida com o Diretório dos Índios, implantado no Brasil em 1758. Somente com a Constituição Federal de 1988 que o direitos dos indígenas foram reconhecidos, no artigo 231 é estabelecido: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.

Indígenas da comunidade Fulni-ô – o povo da beira do rio -, de Pernambuco. Foto: Reprodução/Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)

Apesar de garantidos na Constituição, seus direitos continuam sendo atacados constantemente, em parte pela dificuldade de acesso aos conhecimentos indígenas, mas também pela falta de campanhas educativas eficientes que apresentem as comunidades indígenas e suas culturas com respeito. Para isso, a tecnologia acaba tendo papel fundamental na luta a favor dos povos indígenas.

Segundo Micheline Azevedo, Mestre pelo Instituto de Ciência da Informação da Universidade Federal da Bahia (UFBA), “Linguística e tecnologia da informação não se sobrepõem; elas dialogam e se complementam para potencializar esse conhecimento, que contribui não apenas ao estudo acadêmico, mas também ao empoderamento jurídico e político dessas comunidades”, defende. Ela lembra que, uma vez, presenciou comunidades indígenas utilizando a tecnologia para garantir o reconhecimento da sua terra. Com uma foto tirada por um pesquisador é armazenada num banco de dados, eles conseguiram provar o reconhecimento de sua terra e abrir o processo de oficialização.

Uma das principais uniões entre tecnologia e conhecimento de povos originários são os dicionários digitais. Eles funcionam como os dicionários impressos: registram e explicam termos de uma língua. Como são feitos de forma online, são mais seguros e democráticos para todos, registrando as línguas indígenas e impedindo sua extinção.

O projeto Prombyá tem como ponto central a criação de um dicionário digital, inicialmente com o Guarani-Mbyá, mas com o objetivo de catalogar outras línguas indígenas brasileiras. A proposta teve início na pesquisa de Mestrado de Micheline, sob a orientação e coorientação, respectivamente, das professoras Bruna Lessa e Ivana Ivo, pela UFBA. “A estrutura por trás [do sistema proposto] usa teorias da Ciência da Informação, da Informática e da Linguística”, explica Micheline.

“Nosso protótipo contempla relações semânticas e morfológicas: palavras derivadas, diminutivos e correlações entre outras. E considera ainda casos de contato entre etnias ou variações geradas pelo contato com o português”, diz Micheline. Ela diz que criou categorias semânticas e classes sintáticas específicas, deixando espaço para expansões no futuro, porque a maior parte das línguas indígenas só são transmitidas oralmente, e não possuem registros escritos, por isso, existem variações que só serão conhecidas no futuro.

O dicionário se construiu, inicialmente, para a língua Guarani-Mbyá, levando em consideração suas variações étnicas, seu sentido cosmológico e lexical. “Quando falamos de línguas indígenas, o ‘sentido do léxico’ é aquele usado na rotina. Mas há um ‘sentido cosmológico’, que resgata ancestralidade, e só aparece em contextos muito específicos. Por exemplo: jaguar e cachorro têm uso diferente no cotidiano e na cosmologia indígena”, exemplifica.

No momento, ele ainda não está disponível para o público, mas ao ser disponibilizado será possível analisar a equivalência entre termos de diferentes comunidades. “Este piloto é promissor, pois será réplica para outras etnias, fomentando redes de pesquisa e ensino. O sistema não foi criado só para Guarani: sua estrutura base servirá para qualquer língua indígena, bastando ajustar categorias específicas”, diz Ivana.

O dicionário também terá papel fundamental na educação e integração do ensino sobre os povos originários e suas línguas. Para Micheline, o principal papel dele não será somente o valor cultural, mas a possibilidade de estimular usuários a integrar essa ferramenta ao ensino com aplicações lúdicas e pedagógicas. “Essa base digital permitirá que cientistas filtrem e extraiam exemplos linguísticos (substantivos, fonemas, equivalências) de forma mais rápida, acelerando suas pesquisas”, comenta.

Ivana complementa que na sala de aula você pode buscar informações para serem aplicadas no ensino, “Assim é com as línguas indígenas: [para um professor indígena] ter um dicionário online permite mostrar em tempo real aos alunos, em sala de aula, as palavras e estruturas da língua. São recursos tecnológicos que transformam o ensino e a curiosidade em pesquisa instantânea”, complementa.

Elas enfatizam  que o projeto deve ser feito em colaboração e com o apoio das comunidades, “Se colocarmos à força, estaremos ofendendo tradições. Essa decisão final é sempre deles”, argumenta Ivana. Além disso, a professora enfatiza que a universidade deve ser um pilar para a pesquisa indígena, pensando em cotas e políticas de permanência (moradia, bolsas, suporte e etc.) para os pesquisadores. Segundo Ivana, “a ideia é formar pesquisadores indígenas que estudem e documentem suas próprias línguas, assumindo autonomia na luta cultural e territorial”.

Outro projeto que une tecnologia com saberes indígenas é o Dicionário Indígena Colaborativo (DIC), promovido por um grupo de Iniciação Científica (IC) da escola SESI Paulista, em Recife. Composto por três alunas do ensino médio, ele esteve presente em feiras pelo Brasil, incluindo a Feira Nacional de Iniciação Científica (FENIC) e o Fórum Internacional de Ciência em Puerto Rico (FICEP).

“O projeto surge no início de 2022, quando trabalhávamos nas aulas sobre quinhentismo e a ‘questão indígena’. Percebemos o quanto só se via o indígena como algo de 1500, parado no tempo”, explica Nádia Valença, orientadora do projeto. Por ter uma turma de tecnologia, ela resolveu unir o Python e a pesquisa linguística no ensino dos alunos.

Alunas do SESI Paulista responsáveis pela criação do dicionário digital indígena. Foto: Reprodução/Instagram @dic_projeto

O dicionário funciona num sistema que vai do português para o indígena. Nádia comenta que a motivação surgiu da dificuldade em encontrar palavras indígenas até mesmo no banco de dados da internet. “Aqui, partimos do português para mostrar aos estudantes como se diz ‘mesa’, ‘gato’, ‘sol’ em diversas línguas indígenas”, explica. A coleta foi feita em bibliotecas e acervos digitais, “Partimos de registros acadêmicos, dicionários impressos ou escaneados, para compor nosso banco. Isso já é um tipo de preservação: dar forma eletrônica ao que existia apenas em papel ou oralmente”, complementa Nádia.

O principal objetivo, segundo a equipe, é a utilização do dicionário nas salas de aula. Heloísa, estudante de segundo ano do ensino médio e pesquisadora do projeto, afirma que o produto já está sendo usado como material didático na escola. “Na nova turma do primeiro ano, eles já têm o link do site no livro didático. Isso mostra como um repositório digital pode popularizar o acesso e estimular estudantes que nunca teriam procurado um vocabulário indígena impresso”, comenta.

Um dos principais colaboradores do projeto é a comunidade Fulni-ô, os únicos povos originários que mantiveram viva sua língua (Ia-tê) na região Nordeste, com o território localizado na cidade de Águas Belas. “Apresentamos a proposta às lideranças Fulni-ô. Eles se mostraram empolgados e entenderam a importância de registrar a língua. Falaram que, apesar de terem preservado sua língua oralmente, o contato cultural e a interferência externa ameaçam esse processo”, comenta Nádia.

Dicionário digital em funcionamento, com termo em português e tradução em língua indígena. Imagem: Reprodução/site do projeto DIC

Para Heloísa, Bruna e Ana Maria, estudantes de segundo ano e novas pesquisadoras do DIC, o projeto é uma oportunidade para ampliar o conhecimento delas e de toda a escola sobre programação e os saberes indígenas. “Precisamos ter cuidado para não falar ‘por eles’. Somos colaboradoras, não porta-vozes. Esse respeito mostra que a academia – neste caso, o SESI – pode participar como parceira, e não como substituta, da voz indígena”, diz Bruna. É necessário pensar a língua indígena como parte da cultura brasileira.

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