Durante o Flin 2019, poetas afro-brasileiras, destaques da literatura nacional, apresentaram suas trajetórias e discutiram sobre as lutas e conquistas da mulher negra no meio literário
POR GIOVANNA HEMERLY*
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Há 160 anos, a escritora e poeta maranhense, Maria Firmina dos Reis, fazia história ao lançar o primeiro romance escrito por uma mulher e o primeiro do gênero abolicionista no Brasil, além de ser pioneira dentre as escritoras negras em toda América Latina. Mesmo diante de seu pioneirismo e da publicação de tantos romances, contos e poemas com grande aclamação do público, ainda assim boa parte da trajetória da autora permanece apagada da história.
Hoje, mais de um século depois do lançamento de Úrsula, seu romance de maior sucesso, escritoras negras ainda enfrentam com o preconceito e a discriminação ao buscarem espaço e reconhecimento na literatura nacional. Porém, diferente dos tempos de Firmina, as obras de escritoras afro-brasileiras vêm, aos poucos, se fortalecendo através da representatividade de autoras que estão conseguindo se tornar referência literária e, deste modo, buscando integrar outras escritoras.
Dentre a geração de escritoras poetas que estão sacudindo o cenário da literatura brasileira e internacional, nomes como Ryane Leão, Mel Duarte e Lívia Natália têm ganhado grande destaque. As três estiveram presentes no I Festival Literário Nacional: Diversas Leituras & Novos Caminhos (Flin), onde trocaram ideias, experiências e afeto com o público durante a mesa Linhas de Afeto na Zona de Batalha Zeferina, mediada pela jornalista e apresentadora Flávia Oliveira. O evento foi realizado no Ginásio Poliesportivo de Cajazeiras – um dos bairros com a maior população negra de Salvador – e que abrange uma grande concentração de escolas públicas e de diversidade cultural.
Afetos e resistência - Como a relação entre autoestima, afetos e autocuidado impactam a formação das relações amorosas de mulheres negras? É diante de questões como essa que a poeta soteropolitana e filha de Osun, Lívia Natália, decidiu romper com estereótipos e mostrar que sim, mulheres negras também podem amar, ser amadas e falar de amor. Foi abordando o tema com lirismo em sua obra Dia Bonito pra Chover (Editora Malê, 2017), que a autora ganhou o Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Artes (APCA) 2017, na categoria melhor livro de poesia.
“Esse é um livro no qual eu me propus a falar de amor. Eu fui criada dentro de uma estrutura afetiva em que o amor não era algo que pudesse pôr em prática”, relatou Lívia ao público da Flin. A poeta falou ainda a respeito da representação da expressão do afeto para a população negra e a importância de abordar o assunto em suas obras. “Quando a gente está pensando em afeto de pessoas negras, pensamos, antes de tudo, em sobrevivência, e não nessa palavra que o branco inventou para enfeitar o nosso sofrimento, que é ‘resiliência’. A gente está falando da nossa dor cotidiana de, por exemplo, se sustentar diante do espelho”.
Desde o lançamento de Água Negra (Caramurê, 2010), a escritora vem ganhando notoriedade, tanto na literatura baiana, como na nacional e internacional. A escritora conta que ter conquistado o Prêmio Banco Capital de Poesia nessa época despertou um maior interesse do público pelas suas obras, que veio a se repetir em 2016, mas, desta vez, devido a um episódio de censura ao seu poema Quadrilha, vencedor do projeto Poesia nas Ruas, realizado pela Fundação Cultural do Estado da Bahia (Funceb). Os versos de Lívia que haviam sido colocados nos outdoors de Ilhéus, faziam referência ao genocídio da população negra pela Polícia Militar. No entanto, a tentativa de calar sua voz contribuiu, de certa forma, para que seus poemas tivessem mais visibilidade e alcançasse território internacional, chegando às livrarias de Portugal por meio do livro É Agora Como Nunca – Antologia Incompleta da Poesia Contemporânea Brasileira (Cia. das Letras, 2017), que reuniu a obra de outros 40 poetas selecionados pela artista Adriana Calcanhoto.
No entanto, mesmo diante da conquista de prêmios e de visibilidade, para Lívia Natália se assumir como escritora não foi tarefa fácil. “Para eu sair do armário e dizer ‘eu sou poeta’, foi muito difícil”, contou. Foi só após perceber que se tornar referência literária poderia transformar não só sua vida, mas de outras mulheres negras, que ela declarou-se. “Eu não tive Lívia Natália, não tive Mel [Duarte], não tive Ryane [Leão], não tive Conceição [Evaristo]. Então eu lia os autores brancos e dizia que aquilo era literatura e a gente teria que caber dentro daquilo. Só que a gente não cabia dentro daquilo”.
Desta forma, ela ressalta que a grande veiculação da obra de artistas afro-brasileiros significa também a circulação de representatividade para a população negra nos meios artísticos e literários. Contudo, apesar do sucesso de suas publicações, Lívia Natália ainda busca tornar suas obras mais acessíveis para o público. “São seis livros e eu nunca paguei para publicar. Isso significa que existe sim uma cadeia produtiva de literatura negra, que é de pequeno e médio porte. No entanto, existe uma vontade de que a minha literatura circule o máximo sem fronteiras possíveis”. Dos projetos pensados por Lívia, a obra Águas Negras e Outras Águas (Caramurê, 2017) já está sendo traduzida para o inglês é será lançada nos Estados Unidos e a autora pretende criar um site para ter seus livros vendidos por preços mais acessíveis.
Entre descobertas e cura - Assumir-se como artista também foi um grande desafio para Ryane Leão. “Essa questão de se dizer poeta também atravessa muitas questões de autoestima”, declarou. Ela que hoje produz seus trabalhos a partir de temas como autoamor, identidade e cura, relembrou durante os diálogos no Flin sobre como precisou passar pela autodescoberta e processos de cura para aceitar-se enquanto artista. E foi assistindo a apresentação poética de outras artistas negras da periferia que a autora do recém lançado Jamais Peço Desculpas Por Me Derramar (ed. Planeta, 2019), percebeu que poderia fazer literatura também. “Quando eu vi uma mulher negra declamar, tudo mudou, por dentro e por fora. Porque eu vi que também podia fazer aquilo”, relatou.
Ryane relembrou durante o evento, o início de sua experiência literária marcada por autores dos quais não se identificava e abordavam um universo distante do seu. Isso, segundo ela, impactou durante muito tempo a sua própria compreensão acerca do que é literatura. “Eu queria conseguir falar, contar a minha história e legitimar como algo importante. Porque toda história é importante, mas desde pequena eu sempre ouvia que a minha não era porque ela não cabia naquela literatura que me era apresentada”, contou.
Diferente da trajetória de muitas escritoras negras no Brasil, Ryane se considera “um ponto fora da curva”. Sua carreira literária, que começou há cerca de três anos com o grande incentivo de artistas da periferia, encontrou suporte logo de início com uma das grandes editoras que na época passaram a ter mais interesse em publicar obras de autoras negras. “A editora Planeta me chamou em 2017 porque eles estavam interessados em mulheres que escrevessem sobre ancestralidade, processo de cura e autoamor, que eram coisas das quais eu já escrevia”, lembrou Ryane.
No entanto, a segurança como escritora veio com o segundo livro, lançado agora no mês de novembro. “No primeiro livro eu me sentia uma aposta da editora. No segundo eu já estava lá, então eu já me senti mais à vontade para falar de Candomblé, de Iansã e de afeto, já que eu estava inclusive com outra impressão de mim”, revela.
Literatura do Slam - Assim como Ryane, Mel Duarte é justamente dessa leva de escritoras poetas que iniciaram carreira no Slam. Suas obras trazem ao grande público um pouco do artivismo que permeia as batalhas de poesias da qual faz parte. Fragmentos Dispersos foi seu primeiro livro, lançado de forma independente com o apoio de outros artistas. Apesar da bagagem que a escritora já possuía com as produções literárias dos saraus e slams, esta foi sua primeira experiência com publicações. “Eu não tinha noção que eu podia escolher o papel, não sabia que tinha tantas fontes, não sabia que tinha tamanhos específicos. Eu não tinha noção nenhuma de que o livro podia ser um universo que eu poderia construir e escolher como eu queria apresentar”, disse.
Foi com sua segunda obra, Negra Nua Crua (Editora Ijumaa, 2016), que a poeta teve maior consolidação nas publicações literárias, tendo inclusive seu livro traduzido para o espanhol ano passado. “Eu fui convidada para ir à Espanha lançar meu livro em Madrid, por uma editora de lá que entendeu que faltavam mais narrativas negras. Eles queriam contemplar autores brasileiros, o que eu achei incrível, porque eu nunca imaginei que os meus poemas pudessem ser traduzidos, o que dirá ser lançado em um outro país”, contou Mel.
Agora, com o lançamento de Querem nos calar: Poemas Para Serem Lidos em Voz Alta (Planeta, 2019), organizado em parceria com a artista Lela Brandão e prefácio de Conceição Evaristo, Mel Duarte pode dar visibilidade para a obra de outras escritoras negras, convidando mais 15 slammers das cinco regiões do Brasil, para publicar suas produções artísticas. “Infelizmente ainda é um pouco, mas eu fico muito feliz de poder indicar 15 nomes.Isso faz muito diferença”. Ela ainda pretende produzir mais trabalhos como esse. “A gente pode trazer ainda mais, porque hoje tem muitas mulheres em todos os lugares do Brasil produzindo poesia, produzindo literatura de qualidade. Só falta as editoras enxergarem isso”, ressaltou.
*Estudante do curso de Jornalismo na Faculdade de Comunicação da UFBA e repórter da Agência de Notícias em CT&I – Ciência e Cultura